Tiempos recios é o título do último livro do peruano Mário Vargas Llosa. Lançado pela Alfaguara no final de 2019, só foi editado em português no segundo semestre deste ano, com o título “Tempos ásperos”.

Independente da inclinação ideológica do leitor, é inegável a qualidade do autor. Seus livros são leitura obrigatória para mim. Um amigo comprou em Buenos Aires, me emprestou e pude ler a edição em espanhol, no primeiro semestre de 2020. Tiempos recios é, sem dúvida, uma das melhores obras de Llosa. Somos obrigados a reconhecer que só um escritor de talento poderia escrever um romance de exceção sobre um tema tão batido: os incontáveis e sucessivos golpes de Estado na América Latina, promovidos pelos Estados Unidos há mais de um século.

Guatemala, 1954, auge da guerra fria, Eisenhower na presidência dos Estados Unidos. Jacob Arbenz, um político progressista, é eleito e inicia um processo de mudança, de afirmação nacional. Contraria interesses provocando a reação da poderosa United Fruits que, com a ajuda da CIA, promove sua derrubada. Arbenz é acusado de comunista. A velha repetição de episódio que põe a nu o velho e conhecido conluio das elites dominantes locais com os interesses estrangeiros, especialmente americanos. Manipulam a opinião pública, derrubam governos legítimos identificados com os interesses nacionais e populares, colocando no poder fantoches associados aos interesses externos. As apátridas elites locais entregam o país ao saque e, em contrapartida, recebem parte do botim. Mantêm privilégios, aumentam sua riqueza, concentram a renda. A crescente desigualdade aumenta a miséria e a fome.

Em 2014, 60 anos depois do episódio guatemalteco que vitimou Arbenz, se inicia no Brasil um processo semelhante: a derrubada de um governo legitimamente eleito.

Na Guatemala, a United Fruits iniciou e concretizou o golpe. Aqui, o processo foi motivado pelo interesse das grandes petrolíferas internacionais, comandadas pela Shell, de olho no nas jazidas do pré-sal, a nova e recém descoberta riqueza nacional. A Petrobras é o alvo. Uma farsa jurídico-midiática, com apoio do Departamento de Estado norte-americano, é montada com o objetivo de derrubar Dilma e se apoderar do pré-sal. Com denúncias de corrupção na estatal, delações premiadas manipuladas, vazamentos ilegais, foi montada uma grande operação – a Lava Jato, um circo midiático do judiciário em conluio com o Ministério Público Federal. O Supremo Tribunal Federal apoiou, viabilizando a farsa.

Ficou absolutamente claro que a América Latina foi, é e tudo indica que ainda será – não se sabe até quando –, o grande quintal norte-americano. O resultado aí está, o Brasil vive um dos momentos mais obscuros e sem perspectivas de sua história.

Colocaram na presidência um fantoche analfabeto e pirado para fazer tudo que a oligarquia queria: congelar salários, reduzir direitos trabalhistas e previdenciários, entregar o patrimônio nacional a preço de banana, atacar o serviço e o servidor público. O neoliberalismo avançou na busca do seu Nirvana: o Estado mínimo e o fim das regulamentações. Depois de quase três anos de um desgoverno que está destruindo o país, o desgaste veio. Podemos alimentar a esperança de que a partir de 2023 se inicie uma radical mudança de rumos.

Desde 2015 o Rio Grande do Sul tem governos privatistas que defendem a agenda neoliberal. Depois do medíocre José Sartori (MDB), em 2019 assumiu Eduardo Leite (PSDB). Trata-se de um jovem com uma enganosa cara de bom menino bonitinho. Nada poderia ser mais falso. Leite representa o que de mais velho e reacionário existe na oligarquia gaúcha. Uma oligarquia que desde o século XVIII vive do latifúndio improdutivo, que falseou a História, transformando escravagistas, cruéis degoladores e ladrões de cavalo em heróis no imaginário popular. Leite acelerou as privatizações e, o pior, tornou-se um bolsonarista militante, hoje arrependido. Arrependimento tardio. Apoiou o negacionismo do seu presidente e se posicionou contra a vacinação. Virou cúmplice do crime. Como se vê, o gaúcho também vive tiempos recios.

Na Prefeitura de Porto Alegre, desde 2005 tivemos também governos privatistas, neoliberais. Foram 12 anos do ciclo Fogaça/Fortunati (2005-2016), com dezenas de denúncias de desvios e irregularidades em praticamente todos os órgãos do governo, brutal queda dos investimentos, desmonte da estrutura dos serviços públicos, avanço das terceirizações. Escândalos na Procempa (empresa pública de processamento de dados), foi desmontada a Carris, empresa centenária que há alguns anos foi eleita a melhor empresa de transporte urbano do país.

Em 2017 assumiu Marchezan Júnior (PSDB), que radicalizou a agenda neoliberal, declarando guerra, agora aberta, ao serviço e ao servidor municipal. Arrochou salários, não repôs os servidores aposentados, precarizando os serviços de educação, saúde e assistência social. Extinguiu órgãos da Prefeitura, optando por contratar serviços. Entregou à inciativa privada a iluminação pública e a conservação viária. Destruiu o plano de carreira dos servidores, congelou salários, aumentou a contribuição previdenciária. O nível dos investimentos da Prefeitura, que no final dos anos 90 superara 10% da despesa total, caiu para 3,5%. Em 2020 Marchezan Jr. perdeu a eleição, assumiu Sebastião Melo. Este tem o velho e típico estilo do MDB, neoliberal com um falso discurso populista. Seu primeiro ano de governo é a continuidade política do governo Marchezan, que ele não tem coragem de assumir.

O nível de investimento da Prefeitura se mantém muito baixo. Melo deu continuidade a uma política de ataque ao servidor e ao serviço público. Neste ano, até novembro, a Prefeitura gastou mais com serviços de terceiros do que com a folha salarial. Reafirmou a intenção de Marchezan de vender o DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto) e a Carris.

Porto Alegre, que há 20 anos era chamada de “cidade sorriso”, é hoje uma cidade triste, mal iluminada, esburacada, praças e parques abandonados. A exceção é o projeto Orla do Guaíba, uma espécie de “laranja de amostra” que tem a intenção de impressionar e iludir o incauto visitante.

Por toda cidade se multiplica o número de moradores de rua pedindo esmola. A periferia abandonada se ressente da falta de um programa de habitação popular, há muitos anos abandonado, de investimentos em pavimentação e saneamento básico e é, ainda, penalizada pela precarização dos serviços de saúde.

Como a grande maioria dos brasileiros, o porto-alegrense vive, também, tiempos recios.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Paulo de Taso Riccordi 

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