Há frases que marcam o espírito. O tempo passa e elas seguem na memória, como as ditas por Atahualpa Yupanqui no final de um show em Porto Alegre: “Toda separación duele, y quien no piense asi, que se separe”. Foi em 1980 e as frases marcaram porque recém havia me separado de Buenos Aires, onde vivi sete anos. Não é difícil se entusiasmar com a capital portenha, entretanto, foi nessa cidade que vivi a maior tristeza.

Era o segundo semestre de 1972, vivia há meses na capital da Argentina, quando fui perdendo a graça, perdi o riso, perdi o norte. Vieram as lágrimas, buscava nas ruas os coqueiros do Bom Fim, tudo era estranho naquele mundo. Escutava tango aos sábados à noite, tomava um pouco de vinho e me sentia acompanhado pelos cantos tristonhos. Durante a semana, me deitava num divã para falar do passado perdido. Passaram-se meses e uma noite olhava uma vitrina de livros na Calle Corrientes esperando a hora do cinema. De repente, uma moça sorridente me perguntou se não trabalhava numa Policlínica em Lanús. Assim começou a conversa, seguida de namoro e o fim da tristeza sem fim.

A vida é uma história de separações; a vida de cada pessoa pode ser contada através delas. Separação da mãe que aparece e desaparece, mudanças de casa das quais não se esquece, o ingresso na escola que é a primeira separação da família. Para crescer é preciso se separar, é um aprendizado que atravessa a existência. O bebê foi sua majestade, e perder esse lugar pode ser vivido como uma ameaça à vida. Existe para cada um a separação do infantil, pois se esse luto for infinito será impossível crescer. Somos queixosos de todas as separações de que fomos vítimas.

Como enfrentar a dor da separação, como fazer com que os lutos sejam finitos, e assim transformar o amor visível no amor ao invisível, eis a questão. Para atingir o perder de vista se requer a capacidade simbólica que começa com as palavras, o luto da linguagem. Portanto, para enfrentar o desamparo, é necessária certa renúncia pulsional na formação dos vínculos sociais. Vínculos vividos entre tesões e tensões. Talvez o mais insuportável na perda seja o perder de vista, o amor que se foi, o sofrimento que chega. Dificuldades devido à angústia suscitada pela ausência do olhar do outro, olhar que acalma por refletir como um espelho a identidade da gente. O vazio instaurado pelo desaparecimento é uma ameaça que pode ser assustadora. Nos sonhos noturnos retornam as perdas, os mortos, e assim o invisível se torna visível na imaginação.

Um exemplo de desamparo viveu o poeta Carlos Drummond de Andrade. Estava só no velório de Maria Julieta, sua única filha. Era manhã cedinho na capela do cemitério. Foi quando chegou o poeta Thiago de Mello e viu Drummond sentado num canto, com o olhar tristonho, perdido. Quando se viram o nosso maior poeta disse ao amigo: “Poeta. Você veio”. Thiago beijou sua cabeça e ficou ali um tempo de mãos dadas, e quando já estava por sair, o pai enlutado disse: “Amigo”.

As separações doem gerando saudades, um sentimento universal com diferentes nomes, pois a saudade é tanto o desejo de eternidade, como as luzes das ausências. Nos olhos da saudade brotam lágrimas pela memória, bem como algum sorriso pela presença do invisível. A saudade é uma lembrança nostálgica e suave de pessoas, coisas, casas, desejo de voltar. Saudade é sentir que existe o que não existe, mas vive na recordação.

Quando as separações ocorrem repentinamente, geram traumas. Estamos ainda traumatizados com a pior enchente que sofreu nosso estado. As cenas de sofrimentos pela perda das casas, a perda dos móveis e o que veste a história de uma família, tudo isso é chocante. E tem os que perderam seus negócios: ferragens, livrarias, bares, restaurantes. É todo um estado desamparado, e dói a gente se separar da crença de viver num estado seguro. Ainda bem que temos a arte, que salva do desespero, como o livro “A casa alagada”, da escritora Julia Dantas, que teve sua morada invadida totalmente pelas águas. Ela é uma das expressões da resiliência criativa diante do terror. Já se sabe que no amanhã voltarão as enchentes, e é imperioso se preparar.

Recentemente, sonhei com o humorista Millôr Fernandes como um guia turístico do nosso estado. Indicou um lago rodeado de árvores verdes, sem enchente, uma bela vista. Acordei alegre e logo associei o nome Millôr com a palavra melhor, e o rei dos humoristas como um líder animador. Logo associei ao Verissimo com saudades, assim como as saudades do sol que vem e logo vai. A coragem das famílias sofridas, as palavras de Julia, os voluntários, formam a corrente solidária que seca as lágrimas de um estado maltratado. (Publicado na ZH em 22/06/2024)

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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