Mesmo torturando os números da pesquisa Atlas para afirmar que o Brasil retomou o caminho da normalidade democrática, eles teimam em dizer que o bolsonarismo permanece muito presente como ideologia autoritária. Perguntados se as eleições fossem no próximo domingo, 33,9% disseram que votariam em Bolsonaro e 11% provavelmente votariam – 45% de votos prováveis. Perguntados sobre a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de tornar Bolsonaro inelegível, 44,6% discordaram e 43% dos entrevistados afirmaram continuar com uma imagem positiva do ex-presidente.

O Datafolha já tinha mostrado o quadro de polarização relativamente inalterado desde as eleições presidenciais. É bom corrigir logo um a priori de alguns analistas políticos que veem na divisão uma diferença entre projetos de esquerda e de direita, quando a polarização ocorre na escolha entre o sistema democrático representativo e uma ditatura com algum dos seus inúmeros formatos contemporâneos, não necessariamente o das ditaduras militares. Na pesquisa, fica evidente a permanência da força do autoritarismo, pois apenas 3,6% dos eleitores de Bolsonaro não repetiriam seus votos.

Persiste o problema da ausência de um bloco expressivo de centro, situado no espaço entre os polos da esquerda e da extrema direita, que ao fim e ao cabo seja um amortecedor e incentive as soluções negociadas típicas de uma democracia representativa.

Porém, os núcleos do centro e da direita não autoritária têm se mostrado incapazes de aglutinar apoios. Entre os eleitores que se dizem de centro, 39% não indicaram nenhum dos nomes apresentados pela pesquisa e 32% escolheram Simone Tebet, os demais se pulverizaram. Neste sentido, permanece vazio o espaço deixado desde 2015 pelo PSDB e PMDB, destruídos por suas próprias lideranças.

No campo à direita, sem o nome de Bolsonaro, predomina Tarcísio de Freitas, com 60% das preferências. Esta preferência deve ter sido reforçada depois da pesquisa pela participação do governador de São Paulo na aprovação da reforma tributária. Tudo parece indicar seu potencial para se tornar o candidato herdeiro, mas ainda não está claro seu papel no jogo da polarização, pois terá de sinalizar fidelidades ao bolsonarismo e à centro direita não bolsonarista.

Como esperado, nenhuma menção a nomes do centrão liderado por Arthur Lira. Na verdade, os entrevistados mostram uma enorme desconfiança do Congresso Nacional, colocado como a instituição com menor credibilidade entre todas pesquisadas – a penúltima é o exército. Apenas 15% dos entrevistados tem uma imagem positiva do presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira.

Não chega a ser novidade a avaliação negativa do Congresso, entretanto, a rejeição não se traduziu em mudança na qualidade do voto e elegeu um Congresso ainda mais Casa Grande e Senzala, onde se move como geleia a massa liderada por Arthur Lira, descompromissada com objetivos para além dos seus próprios. Este é um campo fértil para os movimentos de rejeição à política, que penetram nas fissuras e por onde o discurso messiânico e autoritário se infiltra.

Este lugar do centro tem sido preenchido por Lula, porém não é razoável supor tratar-se de uma posição naturalmente ocupada pelo líder petista, mesmo ele cumprindo com rigoroso cuidado sua promessa de governar não como petista, mas para além do PT. Significa dizer, em outros termos, que o governo precisa permanecer focado em reunir as forças que impeçam o retorno do bolsonarismo.

Não existem fronteiras perfeitamente definidas que orientem os limites entre a concessão e a fidelidade programática. As negociações pela reforma tributária foram um teatro ao vivo dos dilemas. O episódio revelou uma negociação de ganha-ganha, onde saiu ganhando o país e perdeu o bolsonarismo. Os números da economia deste primeiro semestre ajudaram a criar um clima de relativo otimismo, porém o quadro permanece complexo.

Sem querer jogar com palavras, é um fato que a democracia depende do sucesso do governo, muito mais amplo e profundo do que sua redução a um problema sucessório, ainda uma mera abstração que depende da longa travessia dos três anos e meio que faltam para 2026. Na pesquisa, Lula recebeu uma avaliação positiva de 53% (era 51% em janeiro de 2023). Os números não mostram que muito já foi feito para reverter as tendências golpistas, mas indicam restar um longo percurso ainda. Lula e parcelas majoritárias da esquerda têm consciência dos desafios para garantir a governabilidade e a democracia. Aliás, o governo como um todo tem ficado distante das falsas promessas de soluções simples e de resultados rápidos no curto prazo.

No plano político congressual, o jogo continua pesado e difícil. O governo tem feito concessões, mas em momento algum elas ultrapassaram a linha vermelha, a partir da qual concessões significam rendição. No plano das políticas sociais, o governo conseguiu ampliar as políticas urgentes voltadas para os segmentos de baixa renda que silenciosos, e apesar de tudo, deram a vitória ao PT. Com essas cartas na mão tem conseguido caminhar para frente.

Todavia, para ir além dos mínimos para a consolidação da democracia, é importante trazer de volta ao leito da civilidade parcelas crescentes da classe média – com renda acima de dois salários mínimos e com maior escolaridade, que em termos de apoio significam superar a marca dos 50%.

Os vários fenômenos em curso têm dinâmicas próprias, mas todos estão ligados à importância de garantir um ambiente de estabilidade que crie condições favoráveis para a retomada dos investimentos e do crescimento há tanto tempo esquecidos. Poucos percebem, por exemplo, que a sinalização emanada pela aprovação da reforma tributária é muito maior do que seu próprio efeito diretamente relacionado.

O que foi desenvolvido até aqui deve ser suficiente para fundamentar a conclusão de que a desidratação do bolsonarismo, em todos os seus aspectos, a começar por sua incompatibilidade com a democracia, permanece sendo o principal objetivo das ações políticas.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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