Subiu na cadeira mesmo depois das irritadas advertências de sua esposa. “Arlindo! Você vai dar um jeito nas costas de novo! Deixa de moda e desce já daí!”.
Maria tinha razão. As costas já não eram as mesmas. Doíam quando estava sentado. Deitado também. De pé, mais ainda. Desajeitadamente, insiste na troca da lâmpada. É teimoso. Sempre foi. Com a aposentadoria, piorou. Irrita-se por sentir-se inútil ao ser menos útil que antes.
Cresceu ouvindo que trabalho dignifica. Buscou dignidade a vida toda com a enxada nas mãos. Viveu sendo olhado sem ser visto. Quando visto, olhado com nojo. Mesmo assim, orgulha-se de ser trabalhador.
Maria cuida dos outros e da casa deles. Aprendeu que era seu dever cuidar de sua casa e de seu marido. É o que faz no tempo que sobra. Para cuidar de si mesma, nunca sobra tempo. Ganha o mínimo, que só dá para o mínimo porque junta com o mínimo que o marido ganha.
Entra em prédio bonito, mas só deixam usar o elevador de serviço. Tudo para ela é separado. Pratos, roupas e o banheiro onde os patrões não entram porque têm nojo, apesar de estarem sempre limpos. Come em pé, na cozinha. Com sorrisos e à distância, os patrões dizem que ela é da família. Nunca ganhou um abraço.
Doutor Abelardo insiste em não trocar uma lâmpada em casa. Não por preguiça, mas por prudência. Tem consciência de que é desajeitado. Não nasceu para essas coisas, diz. Foi feito para fazer coisas que se faz sentado em sala bonita, cheirosa e com ar condicionado ligado no máximo.
Malu, sua esposa, não reclama. Já o conheceu assim. Para as tarefas domésticas há empregada, cozinheira, babá e o zelador do prédio que ganha um extra fazendo bicos. Aprendeu que a esposa é quem deve lidar com essa gente e administrar a casa. Fora de casa, gerencia muito mais gente.
O tribunal é um dos raros prédios bonitos em que Arlindo pode entrar, mas não gosta de lá. Entrou a primeira vez porque disseram que ele tinha roubado. Provou-se que era mentira. Mas sentiu-se ladrão só por estar ali, fora do seu lugar.
Agora era diferente. Processou o ex-patrão. Pela primeira vez na vida, exigia alguma coisa. Arlindo queria o que a lei dizia que era seu, mas sentia-se desconfortável com a ideia de ter que exigir. Era como se estivesse ali novamente como ladrão. Ladrão do que era seu.
Esperava encontrar-se frente a frente com Doutor Abelardo. Para seu alívio, ele não foi. Mandou alguém no lugar. Advogado bem vestido que lhe falou em acordo. Menos do que era devido, mas pagaria já. Se não aceitasse, o processo duraria uma eternidade.
Seu advogado achou pouco. Arlindo também. Barganhou. Aumentou um pouquinho. Não passaria disso, Doutor Abelardo estava sem dinheiro. Acabou aceitando um pouquinho mais que pouco. Mais para livrar-se logo daquela situação. Pegou a grana e saiu rápido, como se fosse ladrão.
Maria soube do processo só quando viu o dinheiro. Não gostou. Poderia perder o emprego. Uma traição! Ainda mais agora que Doutor Abelardo gastou tanto com a nova casa de Angra. Foi trabalhar apreensiva. Nada aconteceu naquele dia. Nem nos seguintes. Malu é quem cuida dessas coisas e ela não sabe das coisas do trabalho do marido, que nem Maria.
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