São 40 graus. Sensação de 43. De enxada na mão, Pedro acha que faz mais de 50 graus. Está acostumado ao trabalho duro, mas o calor é um desafio extra. Ganha pouco. Menos que o necessário. Sempre falta alguma coisa em casa. Às vezes comida, às vezes remédio, às vezes esperança.
A sala de Doutor Sidônio Pessoa tem ar condicionado forte. Permite passar o dia de terno e gravata sem vencer o desodorante importado. Trabalha só de tarde. Dedilha papéis, lê e surra o teclado do computador. Vez ou outra, faz audiências. Doutor Sidônio Pessoa detesta audiências. São chatas. Há quem fale demais. Há quem fale de menos. Raramente há quem fale na medida que facilita seu trabalho de decidir. “Trabalho de juiz é árduo!”, diz com frequência. “É um fardo…”.
Pior do que ganhar pouco, é não ganhar nada. Às vezes isso acontece com Pedro. Trabalha e não recebe. O contrário nunca lhe aconteceu. Nada na sua vida vem de graça. Tudo é suado. Tudo é arrancado na enxada. Reclama disso, mas só por reclamar, para botar para fora as frustrações, para não adoecer da cabeça. Reclama só para si mesmo, com lamentos e xingamentos lançados ao vento entre um e outro golpe de enxada. Se reclamar para outros, apanha. Ou fica com fama de preguiçoso ou sujeito difícil. Trabalhador bom no seu tipo de trabalho, é trabalhador dócil.
Por ser árduo, o trabalho de Doutor Sidônio Pessoa é bem pago. No seu tipo de trabalho, a ardência do trabalho se cura com dinheiro. Muito dinheiro. Mesmo assim, Doutor Sidônio reclama. Fala alto e para quem quiser ouvir. Também reclama por reclamar, mas não apanha por isso. Nem fica com fama de preguiçoso. De ganancioso, alienado ou tresloucado, talvez, mas não liga para isso. É fácil não ligar para o que as pessoas pensam quando não podem dizer o que pensam na sua cara.
Como as encruzilhadas da vida são muitas, mesmo vivendo em mundos tão distantes um do outro, quis o destino que Pedro e Doutor Sidônio se encontrassem cara a cara. Pedro, homem do campo que é, não gosta da cidade. Gosta menos ainda da Justiça. Para ele, é lugar de muito salamaleque e palavras difíceis. Tem medo de ser preso por dizer palavra errada, sentar no lugar errado ou ser errado.
Doutor Sidônio Pessoa não gostou do cheiro de Pedro. Tinha aquele azedume do suor de quem trabalha carregando coisas pesadas por aí. Folheou o processo com alguma indiferença à presença dos outros da sala. De supetão, disparou:
– Mas o senhor não pode trabalhar mesmo?
– Não, seu doutor juiz. Excelência… é, desculpe, seu doutor Excelência.
– Mas tem certeza de que não pode trabalhar mesmo? De jeito nenhum?
– Não, posso não senhor Excelência.
– Trabalho nenhum mesmo?
– Olha, seu doutor Excelência, trabalho assim que nem o do senhor, no fresco, sentado no macio, mexendo com papel eu até posso. Mas trabalho de verdade, com enxada, já não estou podendo não. As costas dói demais e o doutor médico disse que não tem jeito não…
Doutor Sidônio não gostou da resposta. Mas a aceitou. Deixou para decidir depois se Pedro teria ou não direito à aposentadoria que pedia. “Enriquecimento ilícito” é o nome que ele dá quando gente que nem Pedro ganha o que não merece. E, geralmente, merece pouco, quase nada.
Seu dia teria terminado com gosto amargo não fosse a boa notícia que recebeu em seguida. Vai receber um terço a mais do que ganha todo mês. E vão pagar pelo trabalho que ele fez antes deste novo pagamento existir. Vai receber mais de um milhão. De uma vez só. Um alívio no seu fardo de evitar o enriquecimento sem causa dos outros.
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Ilustração: Mihai Cauli
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