ViMudanças no trabalho no Brasil

A palavra crise tem sido adotada generalizadamente para descrever desvios observados no curso da normalidade dominante. Um certo conforto conservador, pois além de não ocasionar nenhum dano à forma de pensar, parece admitir a expectativa de retorno possível ao normal anterior.

Na temática do trabalho, por exemplo, a ideia de crise tendeu a ser adotada também como uma espécie de panaceia explicativa às disfuncionalidades constatadas pela generalização da precarização das ocupações e do desemprego massivo. Acontece que a contínua reprodução das terapias tradicionalmente sugeridas sem que produzam o resultado esperado tem levado ao vazio desconcertante que decorre do modo habitual de se pensar a atualidade da crise laboral.

Quando o presente do futuro se separa do presente do passado, tornando o horizonte das expectativas humanas cada vez mais distantes do tempo de experiência acumulada, a mudança de época se estabelece. Esta parece ser a realidade atual da temática do trabalho, que segue a própria  mudança de lógica no funcionamento do sistema capitalista.

Na emergência do chamado capitalismo cognitivo, o trabalho se altera profundamente por sua manifestação imaterial, colocando como novo desafio à classe proprietária a mensuração e o controle dos ganhos de produtividade. Situação equivalente transcorreu com a mecanização do trabalho material, quando, ao final do século XIX, a introdução da chamada administração científica na organização da produção terminou padronizando os métodos de trabalho.

Do fayolismo de Jules Fayol (1841-1925), passando pelo taylorismo de Frederick Taylor (1856-1915), pelo fordismo de Henry Ford (1863-1947) e pelo toyotismo de Taiichi Ohno (1912-1990), a busca da eficiência operacional no exercício das tarefas e da racionalização do tempo de produção material constituíram os fundamentos do trabalho prescrito[1]. Tratava-se do conjunto de regras e objetivos previamente fixados na organização do labor (roteiro do que fazer) que atendia as condições pelas quais a produção material ganhou escala e crescente produtividade na Era Industrial.

Ao longo dos últimos cinquenta anos, contudo, o trabalho prescrito sofreu importante abalo com o avanço nas subdivisões tradicionais das funções, tarefas e atividades configuradas pela multifuncionalidade e polivalência ocupacional. Sinal de que o labor imaterial se generalizou, substituindo o trabalho de prescrição pela improvisação que faz implodir a disciplina e a proteção social e trabalhista.

Mas isso, por outro lado, tornou mais difícil a mensuração da nova produtividade gerada, bem como o controle de funções, tarefas e atividades no âmbito do trabalho imaterial pela classe proprietária[2]. A precarização que toma conta das ocupações e a instabilidade crescente dos contratos comerciais dos “empreendedores” convergem com a retomada do sentido da informalidade nas relações do trabalho de improvisação, domado cada vez mais pela inteligência artificial e pelo uso de algoritmos protagonistas na captura da nova produtividade.

Essa seria a nova administração científica do trabalho imaterial compatível com a base de produção informacional da riqueza capitalista que está superando a Era Industrial neste início do século XXI. Em virtude disso, percebe-se o quanto a emancipação humana pode estar se distanciando dos fundamentos do trabalho para as formas de atividade humana do não labor, na maior parte das vezes não vinculadas pela racionalidade econômica.

Diante do verdadeiro exército de trabalhadores avulsos, precários e precarizados, a alienação toma conta, escondendo relações de trabalho que não permitem saber para quem se trabalha, quem seriam os patrões. Sobre as migalhas da ruína do antigo trabalho prescrito emerge o de improviso, inclusive em atividades que estão à margem do foco de acumulação capitalista no Brasil.

[1]. Mais detalhes: Daniellou, F. Le travail des prescriptions. Dejours, C. A Loucura do Trabalho.

[2]. Ver em: Gorz, A. O imaterial. Lazzarato, M. Immaterial Labor

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial.

Ilustração: Mihai Cauli         Revisão: Célia Bertone

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