A vida de Domingos não era ruim. Não lhe faltavam amigos, amores e coisas. Sobravam desejos, como sobram a qualquer um. Volta e meia pensava em como seria sua vida se ela não fosse do jeito que era. Como seria se tivesse mais. Se tivesse melhores. As hipóteses de vidas alternativas foram alimentadas em sua mente com vaidades, frivolidades e medos até crescerem e se tornarem desejos. As coisas se dão assim na mente, acontecem aos poucos, gota a gota, até que num momento se dá conta de que o poço está cheio. Foi assim que Domingos acordou com o poço de sua mente cheio de ambição.
Não foi sempre assim. Seus desejos eram maneirados pela percepção de sua impotência. Queria coisas do mundo, da vida, dos outros, mas não dava. Não era para o seu bico. Como não tinha jeito de ter o que queria, o jeito era aceitar as coisas como estão, a vida como é, os outros como são.
E foi sem especular ou sequer desejar que as coisas mudaram em sua vida. Assim, no imponderável. De um dia para o outro ficou famoso. Foi uma coisa besta, despretensiosa. Ligou a câmera do celular e começou a dizer o que pensava, sem, de fato, pensar muito no que dizia. Falava quase por falar. Mas o fazia com ímpeto, como se quisesse convencer alguém daquelas ideias das quais, no fundo, nem saberia dizer se delas estava convencido.
Postou na Internet com a tranquilidade de quem sabe da irrelevância daquele falatório que gravou. Foi um susto quando percebeu na semana seguinte que aquelas besteiras o tinham deixado famoso. Repetiu a dose com ainda mais sucesso. Em pouco tempo já era reconhecido nas ruas. “Olha ali o cara daqueles vídeos!”.
A fama dissipou em sua mente as últimas nuvens de impotência. Famoso, acreditava poder tudo e ousou. Agora era “influencer” e julgou que sua influência poderia mudar tudo. Começou pensando em mudar o mundo para melhor. Mas esse devaneio durou pouco. A vaidade lhe atiçou a mudar a própria vida, o que é bem mais fácil de se fazer quando se deixa de lado qualquer altruísmo ou a sanha besta de querer um mundo mais justo. Era bem melhor só continuar com o falatório de obviedades, as frases de efeito, as barbaridades que gostavam de ouvir saindo de sua boca.
De “influencer” foi a deputado. Fez campanha na internet. Parlamentou do mesmo jeito. Ridicularizava quem valia a pena ridicularizar para ganhar seguidores. Discursou para ficar bonito nos vídeos. Em momento algum se preocupou realmente com algum voto ou projeto. Aprendeu rápido com os parlamentares mais antigos a parlamentar do jeito que se parlamenta por lá. Trocou votos por liberação de emendas, cargos para bajuladores, vídeos para seu público.
Mas tudo isso lhe consumia de um jeito estranho. O corpo e o espírito, aos poucos, foram-lhe pesando de um jeito estranho. De tantas lacrações, brigas performáticas, chantagens astutas, sua mente voltou novamente a pensar em como seria sua vida se ela não fosse daquele novo jeito. Sem fama. Sem disputas. Sem medo.
E como na vida as mudanças acontecem meio aos poucos e meio de repente, foi meio aos poucos e meio de repente que, se olhando no espelho, não se reconheceu mais. Não era mais o Domingos que um dia foi. Viu um estranho ali, ainda que tivesse a certeza daquele estranho ser ele mesmo.
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Ilustração: Mihai Cauli
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