Transplantes infectados pelo HIV
Os ricos na armadilha do “SUS pobre para pobres”

O escândalo: um alerta para as classes média e alta

Em setembro, explodiu o escândalo dos transplantes de órgãos infectados pelo HIV, em que seis pessoas transplantadas foram infectadas em consequência de fraudes decorrentes de conluios político-partidários no Sistema Único de Saúde (SUS) do Estado do Rio de Janeiro, como se verá.

Os detalhes deste escândalo que não para de crescer, envolvendo cada vez mais políticos, gestores do SUS e prestadores de serviço, estão nas muitas matérias jornalísticas que denunciaram e jogam luz sobre esse absurdo inadmissível.

Queremos mostrar que este caso serve de alerta para as classes média e alta, que supõem não depender do Sistema Único de Saúde (SUS) porque possuem bons planos de saúde privados.

Ocorre que, no caso dos transplantes, as classes média e alta dependem direta e exclusivamente do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) do SUS, regulado pela Portaria de consolidação GM/MS nº 04, de 28 de setembro de 2017.

E, pior ainda para os mais ricos, numa questão central do SNT os mais abonados correm os mesmos riscos que os mais desfavorecidos, que não possuem planos de saúde e dependem exclusivamente do “SUS pobre para os pobres”. Trata-se dos exames sorológicos feitos no doador de órgãos, na unidade da Federação em que faleceu, para atestar sua validade como doador e evitar a contaminação do receptor por uma série de patógenos e doenças.

Como veremos no caso do Rio de Janeiro, esses exames sorológicos estão, como em qualquer outro estado, totalmente submetidos às péssimas condições de organização e gestão do “SUS pobre para os pobres”, ou seja, totalmente submetidos à possibilidade de todo tipo de fraudes decorrentes de conluios político-partidários no SUS.

É isto que coloca em risco todos os transplantados de todo o país, tanto os mais pobres quanto os mais ricos.

Por isso acreditamos que esse escândalo dos transplantes infectados com o HIV pode, finalmente, ser capaz de mobilizar as classes média e alta, para que saiam de sua conveniente alienação e assumam postura politicamente ativa para superarmos de vez a causa maior desse escândalo, dessas fraudes e da politização, privatização e decadência do SUS.

Essa causa maior é a total inviabilidade de uma gestão profissional, eficaz, eficiente e de qualidade do SUS, enquanto este for organizado com base em nosso federalismo municipalista alucinado, único no mundo, como demostramos no artigo publicado aqui no Terapia Política: Por que a esquerda brasileira morreu – A esquerda e a sua luta platônica contra as  políticas sociais pobres para o pobres.

O Sistema Nacional de Transplantes: ricos e pobres em fila única

Por que as classes média e alta dependem direta e exclusivamente do SNT?

Porque, independentemente de seu nível de renda, o potencial receptor de um órgão para transplante é inscrito, pelo SNT do SUS, numa fila única de âmbito nacional, e sua posição na fila depende exclusivamente de critérios técnicos sobre suas condições de saúde e urgência do transplante para a preservação de sua vida.

Assim, o potencial receptor, uma vez eleito para o transplante de um novo órgão, conforme os critérios de manejo da fila única de receptores, normalmente faz o transplante num hospital do SUS credenciado para esta cirurgia, mas, dependendo de suas condições financeiras, pode fazer o procedimento em um hospital privado de sua preferência, também credenciado pelo SUS para transplantes.

Este foi o caso do apresentador Fausto Silva, que fez seus dois transplantes, coração e rim, no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. 

Os ricos na armadilha do “SUS pobre para os pobres”

Entretanto, no Sistema Nacional de Transplantes (SNT), ricos e pobres não escapam de dois aspectos cruciais para o êxito de um transplante: (I) a fila única de âmbito nacional; e (II) os exames sorológicos feitos no doador, na unidade da Federação em que faleceu, para atestar sua validade como doador e evitar a contaminação do receptor por uma série de patógenos e doenças.

E é aqui, nos exames sorológicos feitos no doador no estado de seu falecimento, que os ricos se expõem à armadilha do “SUS pobre para os pobres”.

Isto porque, enquanto a fila única de potenciais receptores é “monitorada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e por órgãos de controle federais”, os exames sorológicos feitos no doador, no estado de seu falecimento, estão totalmente submetidos às péssimas condições de organização e gestão do “SUS pobre para os pobres”, quais sejam, as condições de organização e gestão do SUS específicas de cada estado e de cada um de seus municípios.

São 5.598 entes federados que, devido às suas autonomias político-administrativas no interior da organização e gestão do SUS, são, cada um, “dono” de “seu” SUS, e fazem deste o que querem: a União, os 26 estados, os 5.570 municípios e o Distrito Federal.

E este modelo de organização do SUS, sobre nosso federalismo municipalista alucinado único no mundo, tem sido uma porta escancarada para os piores interesses político-partidários e eleitorais, e fonte principal da politização, decadência, privatização e fraudes no SUS.

Resultado: conluios político-partidários, fraudes e transplantes contaminados

A prova maior disto, entre milhares de exemplos conhecidos há longos anos, está agora no recente escândalo dos transplantes de órgãos infectados pelo HIV no Estado do RJ.

Aqui, o governador Claudio Castro (PP) nomeou Secretário de Saúde, em janeiro de 2023, o deputado federal conhecido pela alcunha de Dr. Luizinho (PP), com o objetivo explícito de fazê-lo candidato a prefeito do Rio de Janeiro em 2024. Luizinho ficou no cargo até setembro de 2023.

Os donos do laboratório responsável pelos falsos negativos para HIV de dois doadores, o PCS Labs Saleme, do município de Nova Iguaçu, são parentes do Dr. Luizinho, um tio e um primo. Nova Iguaçu é a base eleitoral do Dr. Luizinho.

Este laboratório foi contratado, em nome da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, pela Fundação Saúde deste Estado, que é parte da Secretaria de Saúde. Aliás, o laboratório foi contratado contra pareceres técnicos que recomendavam a contratação do Hemorio, órgão do Estado do RJ muito conceituado.

Detalhe importantíssimo: a irmã do Dr. Luizinho, Débora Medina, é diretora de Planejamento e Gestão da Fundação Saúde do RJ, a contratante do PCS Labs Saleme, de um tio e um primo de Débora Medina e do Dr. Luizinho.

Ou seja, trata-se de um triângulo amoroso, mas de amor familiar: no vértice principal está o Dr. Luizinho, deputado federal do PP; no segundo vértice o laboratório responsável pelos falsos negativos para HIV, cujos donos são um tio e um primo do Dr. Luizinho; e no terceiro vértice a contratante do laboratório, a FSERJ, cuja diretora de Planejamento e Gestão é Débora Medina, irmã do Dr. Luizinho.

Ora, vejam que interessante! O Dr. Luizinho (PP) está nos três vértices desse triângulo! E com ele o governador Claudio Castro (PP), que o nomeou.

Também está junto com o Dr. Luizinho neste escândalo uma personagem oculta, sua substituta na SES/RJ, a Dra. Claudia Mello: “Só tenho a agradecer ao Dr. Luizinho pelo trabalho realizado em benefício da Saúde do Estado do Rio [??!!]. … Portanto, nada mais natural do que aceitar a sugestão dele de nomear a Dra. Claudia Mello, seu braço direito, para dar continuidade ao trabalho que tanto benefício tem trazido para a população [??!!]”, declarou o governador Cláudio Castro”.

Ou seja, a Dra. Claudia Mello foi, durante toda a gestão do Dr. Luizinho, seu braço direito. E não consta que o braço direito faça movimentos contrários ao que manda o cérebro.

Seria este um caso único no SNT do SUS?

Diante deste descalabro que, como vimos, pode ocorrer em qualquer uma das unidades da Federação, devido à forma de organização do SUS e do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) mencionada acima, cabe a pergunta: seria este um caso único no SNT?

Claro que nada se pode afirmar a respeito, por ora. Entretanto, conforme a imprensa, “O Centro [Central] Estadual de Transplantes do Rio de Janeiro orientou, nessa sexta-feira (11/10), que pacientes transplantados nos últimos meses no estado busquem atendimento médico. … A recomendação é que os pacientes busquem os médicos responsáveis por seus transplantes caso tenham passado por qualquer reação adversa. O Centro Estadual de Transplantes não descarta que haja mais pessoas infectadas por erro do laboratório de Patologia Clínica Doutor Saleme (PCS-Saleme)”.

Por óbvio, esse alerta vale também para os transplantados nos demais estados.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor.