A repercussão do falecimento da professora Conceição Tavares nos meios acadêmicos em geral e até na imprensa tradicional foi significativa; e isso, apesar de ela operar na contracorrente da praxis econômica hegemônica, bem como do establishment político e ideológico. Não era para menos, posto que durante aproximados 50 anos a sua presença foi marcante na cena social brasileira.
Para tal, dentre outros aspectos, concorreram: a verve irresoluta que ela brandia contra tudo que entendesse despautério histórico e/ou teórico; o inconteste reconhecimento nacional e mesmo internacional que ela logrou obter ao longo do tempo; a produção intelectual sólida, inovadora e seminal publicada nesse cerca de meio século de vida profissional*; a atuação decisiva na construção de consagradas instituições acadêmicas e de pesquisa brasileiras**; as aulas e palestras magistrais, amadurecidas e instigantes proferidas em sua vida de economista; a destemida atuação partidária e não-partidária em prol da emancipação política do povo brasileiro; a paixão pelo Brasil que, no entanto, jamais perdia de vista o que se passava no mundo***.
Testemunha vivencial de praticamente tudo o que veio de ser arrolado, tendo inclusive sido seu aluno nos 1970’s, entendi que também devia registrar um tributo a essa mestra de sucessivas gerações de economistas daqui (Brasil) e alhures (particularmente, da América Latina). Destaco de pronto que seus ensinamentos, em sentido amplo, estimularam a que muitos de nós, estudantes de economia, alunos dela ou não, abraçassem apaixonadamente essa profissão; e mais: o fizessem com a consciência de que esse ofício tanto era meio para nossa inserção no mercado de trabalho e meio de prover a vida quanto para luta em prol da construção de um projeto de País soberano e justo.
Isto posto, registro que meu primeiro contato com a professora Conceição ocorreu enquanto discente, em 1975, no curso de graduação da Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FEA/UFRJ). Nesse ano ela ministrou para a minha turma as disciplinas de Desenvolvimento Econômico I e II. As aulas do meio da semana eram dadas por seu assistente, o saudoso Antônio Jaime Gama Jobim; e, as de sábado, pela própria Conceição. Nesses dias (manhãs) ocorria algo fantástico: ela não apenas recuperava de maneira admirável a bibliografia sistematizada pelo professor Antônio Jaime, bem como elaborava grandes e transcendentes sínteses.
Vê-la pensar em voz alta era desafiador, porém, ao mesmo tempo, estímulo intelectual ímpar. Não à toa muitas vezes as discussões iniciadas naquelas manhãs se estendiam pela parte da tarde no campus que sediava (e sedia) o aludido curso. Enfim: não queríamos que aquilo acabasse!
Aquelas manhãs de sábado consistiam, ademais, em extraordinários eventos. Além de nós, alunos e alunas regulares, a sala de aula era ocupada por pessoas de outras turmas, de outras instituições etc. Tenho gravado na minha retina, passado todo o tempo em questão, que por vezes ela sequer tinha liberdade para se movimentar em classe, dado o número de pessoas sentadas no chão e em seu entorno. Em suma: os encontros ora referidos, sem qualquer dúvida, foram especialíssimos.
Todavia, talvez o mais significativo daqueles dias/manhãs era que essas “aulas nos abriam o mundo”. Mais precisamente: a bibliografia indicada para cada sessão, além da sua importância de per se, servia de suporte para que ela estabelecesse diálogos com variadas abordagens teóricas, com a cena internacional, com o País em que vivíamos, com os sonhos e utopias daquela geração de jovens estudantes. Saíamos daquelas sessões, em suma, com efetiva sede de conhecimento de modo a poder exercer o mais competentemente (e cidadã) a profissão que então estávamos abraçando.
Foi à luz, digamos, dessa tomada de consciência que muitos/muitas daquela geração resolveram participar do processo de seleção da Associação Nacional dos Centros em Pós-Graduação em Economia (ANPEC) e outros/outras decidiram se preparar para o ingresso no serviço público, notadamente nas empresas sediadas no estado do Rio de Janeiro. De outro forma: os/as que assim decidiram queriam ser quadros do Estado brasileiro e contribuir para a construção do referido projeto de desenvolvimento.
Também a ela, embora não exclusivamente, claro, devemos o entendimento de que podíamos fazer da nossa profissão algo socialmente útil. Uma adição: nada disso acontecia porque faltasse emprego na chamada iniciativa privada – pelo contrário, pois ainda vivíamos as “sobras” do chamado milagre econômico brasileiro (1968-73). É dizer: o estar no mundo não tinha sido ainda, felizmente, contaminado pelo individualismo que se instalou avassaladoramente no Brasil a partir dos anos 1990.
Voltando à ANPEC. Tal instituição exigia uma carta de recomendação para participar da sua seleção anual. Eu e um colega de turma conseguimos com ela tal carta/indicação. O que para mim merece destaque nesse singelo gesto era seu compromisso com os jovens economistas. Outro gesto da mesma cepa ocorreu quando do meu retorno ao Rio logo após a conclusão dos créditos disciplinares do mestrado. Sabedora que eu estava vivendo basicamente de uma bolsa de estudo (que logo terminaria), ela ligou e me sugeriu ir a uma entrevista de emprego no IBGE. Resumindo: fui contratado, passei a custear a minha vida sem os sobressaltos de antes e comecei a trabalhar efetivamente na elaboração do trabalho de conclusão do curso em questão. Relato esses fatos apenas para mostrar uma faceta pouco conhecida da professora Conceição, qual seja, ela também era uma pessoa generosa – na prática, uma humanista.
Adiciono apenas mais um fato dessa minha história com a professora Conceição: durante 15 anos estive trabalhando fora do Rio de Janeiro, a minha cidade natal. Em um seminário realizado no Instituto de Economia da Unicamp-SP, em 1993, lhe falei do meu propósito de retornar para “casa”. Após algumas ponderações, ela sugeriu que eu procurasse o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Como eu conhecia alguns professores dessa unidade institucional**** e muito me atraía a sua marcada perspectiva interdisciplinar, aceitei a sugestão.
Sem delongas: nesse Instituto, o IPPUR, vivi os anos mais profícuos da minha carreira acadêmico-profissional. Suspeito que ela sabia do meu interesse pela chamada interdisciplinaridade através da amizade que tinha com o professor Carlos Lessa, meu orientador de mestrado, que tanto contribuiu para que eu imprimisse essa marca em minha dissertação. Ou seja: aumentei mais uma vez meu passivo com a professora Conceição.
Por considerar relevantes seus ensinamentos acadêmicos e de vida acrescento nesse texto/homenagem três comentários finais, a saber:
- a) a postura crítica que ela tinha diante de toda e qualquer ortodoxia e paradigma. Explicando: Conceição sempre as contrapunha ao tempo e lugar dos seus objetos de análise com o objetivo de checar suas validades (ou não);
- b) as iradas diatribes em que ela se envolvia, possivelmente por temperamento e quiçá por método, eram manifestações da sua consciência do quanto elaborações equivocadas em nossa área de atuação, principalmente se utilizadas por gente intelectualmente desonesta, geram efeitos socioeconômicos perversos; e,
- c) apesar da postura firme e mesmo agressiva nos anotados embates, não era incomum ela demonstrar carinho com seus colegas, amigos e mesmo, por vezes, até com interlocutores dos quais discordava.
Face o exposto cumpre dizer, concluindo, que a professora Conceição foi sem dúvida uma intelectual brasileiríssima (nascida em Portugal) e um ser humano profundamente humanista; e, mais: precursora, uma vez que diuturnamente mostrava que as mulheres podiam e deviam vicejar no nosso ambiente profissional (e em qualquer outro). Viva nossa mestra maior, a professora Maria da Conceição Tavares!
Notas:
- * Ilustrando: “Da substituição de importações ao capitalismo financeiro”; “A retomada de hegemonia norte-americana”; “Ciclo e crise – o movimento recente da industrialização brasileira”; dos famosos livros de capa vermelha editados pela Vozes/Petrópolis (em fecunda parceria com o professor José Luís Fiori) etc.
- ** Como segue: Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-SP), Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Instituto de Relações Internacionais e Defesa na mesma UFRJ.
- *** Ela que nascera em Portugal.
- **** Especialmente a professora Rosélia Piquet, de quem fui aluno e monitor de ensino na supramencionada FEA/UFRJ.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartoni
Leia também “Maria da Conceição Tavares“, de Paulo Nogueira.