O retorno de Trump expõe uma disputa estrutural entre os grandes monopólios que compõem a base de sustentação econômica da sociedade americana. Além da troca de republicanos por democratas, há uma luta pela hegemonia no interior das elites.
A recente eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos reacendeu o debate sobre as disputas internas (cada vez mais agudas) no capitalismo estadunidense. Além das tensões políticas evidentes entre republicanos e democratas, o retorno de Trump ao poder expõe uma disputa estrutural entre os grandes monopólios que compõem a base de sustentação econômica da sociedade – entre aqueles que se encontram defasados e na obsolescência e os que buscam modernizar e reorganizar cadeias produtivas e estabelecer uma nova hegemonia dentro das elites dominantes, bem como suas articulações com cada partido e mudanças nas alianças e estratégias no mundo.
Monopólios e poder político
Nos EUA, a política é profundamente influenciada por grandes conglomerados empresariais que financiam campanhas, definem agendas e moldam políticas públicas. Durante o primeiro mandato de Trump, vimos a ascensão de setores industriais tradicionais como petróleo, gás, aço e manufatura, no centro das suas prioridades políticas. Esses setores, frequentemente associados ao “cinturão enferrujado” e às regiões mais afetadas pela globalização e pela desindustrialização, formam a espinha dorsal do apoio econômico e político de Trump. O fechamento de fronteiras, a construção de muros e as ameaças aos imigrantes ilegais ao mesmo tempo em que atrai o apoio de trabalhadores nativos, tornam os ilegais presas fáceis para o subemprego do capitalismo decadente.
Por outro lado, os democratas têm consolidado sua base nos monopólios tecnológicos do Vale do Silício, como Google, Apple, Amazon e Meta, os chamados “conglomerados digitais” que ascenderam em fortuna e poder na virada do terceiro milênio e são cada vez mais decisivos para a indústria bélica e de defesa. Esses gigantes têm interesses centrados em uma economia digital globalizada, pautada por inovações tecnológicas, controle monopolista de dados e plataformas de serviços, de comércio, de novas plataformas financeiras digitais e das estratégicas indústrias de defesa.
Trump e os monopólios tradicionais
Após a fracassada tentativa de golpe de estado, e de quatro anos de Biden na presidência, o retorno de Trump ao poder simboliza a revanche dos setores industriais e de energia tradicionais, que se opõem às políticas de transição energética e regulação climática promovidas pelos democratas, e a nova aliança de Trump com setores dissidentes das corporações digitais do Vale do Silício, representadas por Musk e Peter Thiel.
Durante seu primeiro mandato, Trump enfraqueceu agências reguladoras ambientais, ampliou o uso de combustíveis fósseis e adotou uma política externa baseada em sanções econômicas e tarifas, protegendo indústrias locais.
Além disso, o setor financeiro ligado ao mercado de commodities e às corporações industriais, como ExxonMobil e General Electric, encontraram no trumpismo uma defesa de seus interesses contra a crescente hegemonia dos setores “digitais” e suas plataformas comerciais e financeiras.
Na véspera das eleições, BlackRock e Vanguard foram grandes compradores de ações da Trump Media no segundo trimestre de 2024. As ações da Trump Media começaram a ser negociadas na Nasdaq em 26 de março e têm sofrido grandes oscilações desde então.
Democratas e a nova economia
Enquanto Trump representava os interesses da economia “física” decadente e os setores minoritários das novas tecnologias digitais e de energia renovável, os democratas refletiam as demandas da economia “digital” monopolista consolidada e ainda hegemônica dentro dos EUA. Empresas como Amazon, Meta e Google dependem de mercados globais integrados, regulamentações ambientais moldadas a seus interesses, mais rígidas com seus concorrentes e políticas de inclusão que ampliem o consumo para suas plataformas comerciais e de serviços, especialmente entre grupos marginalizados. A economia baseada em dados e inteligência artificial, promovida por esses monopólios, vê com desconfiança as posturas protecionistas e nacionalistas de Trump, que ameaçam o fluxo global de capitais e de controle de tecnologia.
A ascensão de Joe Biden em 2020 foi marcada por uma agenda de sustentabilidade e inovação, que buscava atrair o apoio dos jovens e da classe média urbana. Contudo, a resistência em estados industriais e rurais revelou as contradições desse modelo, que muitas vezes negligencia setores tradicionais da economia, os quais buscam perpetuar seu poder sem modernizar sua base produtiva.
Disputa pelo futuro
O embate entre Trump e os democratas não é apenas político, mas econômico. De um lado, estão os interesses de monopólios vinculados à indústria tradicional, que buscam preservar o status quo das relações produtivas do século XX. De outro, estão os gigantes tecnológicos, que moldam a economia do século XXI e promovem uma visão de futuro pautada pela automação, inteligência artificial e globalização digital sob sua hegemonia.
Essa disputa também reflete contradições internas do capitalismo. Enquanto os monopólios industriais exigem barreiras protecionistas e incentivos estatais, os tecnológicos demandam mercados desregulamentados e integração globalizada por eles hegemonizada. Paradoxalmente, ambos dependem de intervenções contraditórias, e por vezes antagônicas, do Estado, seja para proteger setores em decadência, seja para sustentar os novos monopólios digitais globais.
O impacto global
A eleição de Trump reacenderá conflitos comerciais e geopolíticos, especialmente com a China. Sua postura protecionista pode intensificar a fragmentação do sistema econômico global, levando a uma nova era de regionalização e rivalidades entre blocos econômicos.
Para o resto do mundo, a disputa entre os monopólios estadunidenses significa uma oscilação constante entre agendas ambientais progressistas, como as defendidas pelos democratas, e um retorno à exploração intensiva de recursos, promovida pelos republicanos. Em ambos os casos, a concentração de poder econômico em poucas corporações permanece inalterada, com consequências devastadoras para economias periféricas.
A reeleição de Trump não deve ser vista apenas como um triunfo do populismo, mas como um capítulo da disputa entre dois projetos econômicos incompatíveis dentro do capitalismo dos EUA. Essa batalha reflete uma luta mais ampla pela hegemonia econômica no século XXI, com implicações profundas para o equilíbrio global.
O futuro dessa disputa não apenas moldará os rumos dos EUA, mas também definirá as bases da ordem mundial, reforçando a necessidade de uma governança global mais equilibrada que limite o poder dos monopólios, sejam eles industriais ou digitais.
Os dissidentes Musk e Thiel colocaram suas fortunas e redes para trabalhar para Trump e Vance
A reeleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos reflete um realinhamento político-econômico que vai além da rivalidade entre republicanos e democratas. Um elemento chave nesse novo cenário é a adesão de personalidades dissidentes do bloco hegemônico das gigantes digitais, como Elon Musk e Peter Thiel, o ex-conselheiro do grupo Meta, cofundador e ex-CEO do PayPal, à órbita de apoio a Trump. Essa aliança incomum sugere que o embate entre os monopólios tradicionais e tecnológicos pode estar se transformando em algo mais complexo e estratégico.
Os dois bilionários do Vale do Silício lançaram uma grande campanha de arrecadação de fundos para financiar a campanha do candidato republicano nas eleições. O bilionário Peter Thiel deu crédito, em parte, a Elon Musk por ajudar outros líderes de tecnologia a se sentirem confortáveis em apoiar publicamente o presidente eleito Donald Trump nesta eleição. O ex-CEO do PayPal Thiel, que já apoiou financeiramente Trump em 2016, disse que a aceitação de Trump por Musk foi fundamental para facilitar a mudança dos “descontentes” do Vale do Silício para a direita nas eleições de 2024.
O papel de Elon Musk no “trumpismo modernizado”
Elon Musk, à frente da Tesla, SpaceX e Twitter (rebatizado de X), representa um arquétipo de inovação tecnológica que geralmente estaria alinhado aos democratas e seus aliados no Vale do Silício. No entanto, Musk deu apoio a Trump, baseado em dois fatores centrais:
1 – Divergência com o Vale do Silício tradicional: Musk se posicionou como crítico do que ele considera um excesso de regulamentação, censura nas plataformas digitais e o alinhamento político homogêneo de grandes empresas como Google e Meta com os democratas. Ao adquirir o Twitter e adotar uma política de moderação mais permissiva, Musk se tornou um defensor da “liberdade de expressão” no espaço digital, uma pauta que ressoa com a base trumpista.
2 – Foco na Inovação e Desregulamentação: O trumpismo oferece a Musk um ambiente mais favorável para investimentos em setores como energia renovável (onde ele domina o mercado de veículos elétricos) e exploração espacial. A relação pragmática com o governo de Trump pode trazer incentivos fiscais, desburocratização e contratos governamentais significativos para empresas como a SpaceX.
Assim, Musk pretende redefinir correlações e atuar como uma “ponte” entre os monopólios tecnológicos e a agenda nacionalista de Trump, ajudando a “modernizar o trumpismo” com uma narrativa de inovação e soberania tecnológica. Vai participar diretamente da gestão de Trump.
O papel do ex-consultor financeiro da Meta – Peter Thiel
A adesão do ex-consultor financeiro do grupo Meta ao projeto de Trump reflete a insatisfação de setores internos do Vale do Silício com as estratégias monopolistas e globalistas dos democratas. Essa mudança pode ser entendida por meio de três aspectos:
1 – Críticas à política fiscal: muitos executivos de tecnologia consideram que as políticas fiscais democratas, que aumentam impostos sobre grandes fortunas e empresas, prejudicam a capacidade de inovação e expansão global. Sob Trump, espera-se um retorno a políticas fiscais mais amigáveis ao capital.
2 – Preocupação com o equilíbrio geopolítico: enquanto a Meta e outras empresas de tecnologia têm forte dependência de mercados globais, executivos alinhados a Trump pretendem uma abordagem mais protecionista que garanta a competitividade das empresas americanas em detrimento de gigantes tecnológicos chineses.
3 – Liderança em Inteligência Artificial (IA): A revolução da IA e sua regulação são pontos de tensão entre os monopólios digitais e o governo. A busca por um ambiente menos regulado, no qual os EUA possam liderar globalmente, encontra no trumpismo um terreno mais fértil para se desenvolver.
Oportunidades e contradições na aliança
A entrada de figuras como Musk e Peter Thiel em apoio a Trump traz oportunidades, mas também revela contradições na base econômica do trumpismo. Por um lado, essa aliança pode atrair setores mais modernos da economia, rompendo a dependência exclusiva de Trump das indústrias tradicionais. Por outro lado, há tensões inevitáveis entre o nacionalismo protecionista de Trump e a lógica globalista das Big Techs que ainda orienta boa parte do setor tecnológico.
Além disso, enquanto Trump se apoia na retórica populista contra elites empresariais e políticas, ele também precisará equilibrar o apoio de magnatas como Musk, cuja figura personifica as elites globais que o populismo pretende combater. (Publicado por Geração 68)
NR: Na continuidade do artigo, o autor trata das transformações esperadas com a vitória de Trump em temas como a geopolítica externa e interna, as novas coalizões econômicas, a indústria bélica e dedica um espaço para discussão do papel de Elon Musk e Thiel em um “Novo Trumpismo”. Para continuar lendo, Clique aqui .
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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