Como a mídia influencia o entendimento sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia

Após quase 40 anos da distópica data prenunciada por George Orwell[1] em Nineteen Eighty-Four (ou 1984, como acabou se popularizando), publicado em 1949, vivemos num mundo com evidentes traços da distopia orwelliana. E não estou me referindo aos ferozes hunos ou aos cruéis mongóis, a nenhum daqueles horrendos predadores vindos das terras do Oriente, mas ao espaço das sólidas democracias ocidentais, ao Império e seus satélites do velho e do novo mundo.

Desmemória

Para a celebração do aniversário de um ano da invasão do território ucraniano pelos exércitos de Putin (24 de fevereiro de 2022), foi montado um calendário de espetáculos públicos de variadas dimensões, até culminar em dois grandes shows. O primeiro, com a aparição, inédita, como trataram de destacar as mídias em uníssono devidamente coordenado, do grande chefe na capital da Ucrânia. Biden visita Kiev – uau! A compungida solidariedade do comandante supremo das forças do bem (a OTAN – sic!) ao país invadido pela toda poderosa Rússia. O segundo, com o discurso em praça pública sob o frio da noite de Varsóvia. Ou, como ribombou o El País, “Biden promete em Varsóvia defender ‘cada polegada’ do território da OTAN”. Claro, por supuesto!

O engodo e o cinismo, de mãos dadas, não têm pátria, mas o Império nesse quesito se mostra insuperável. Estamos falando de narrativas, isto é, da capacidade de se apresentar ao público, às pessoas, gente de carne e osso que todos os dias se levanta pela manhã para ir trabalhar, e contar mentiras as mais cabeludas sem se ruborizar.

Recorro à minha curta memória e ao registro rápido feito recentemente, durante o recolhimento forçado da pandemia. Aqui estão alguns dos “países invadidos e/ou atacados militarmente” pelos Estados Unidos, a partir de 1950 (lista montada de uma busca mais ou menos aleatória na internet).

  • “Em 1950, depois do espetacular triunfo na Segunda Guerra, o Império inaugura sua hegemonia… intervindo na guerra da Coreia (…). Menos de dois anos depois do término desta guerra, em fevereiro de 1955, chegaram os primeiros assessores militares para o Vietnã (…) Uma década depois, em 1964, já havia 21 mil militares estadunidenses no Vietnã. Em 1975, foram finalmente expulsos. Deixaram um saldo de pelo menos um milhão e cem mil vietnamitas mortos. Passados apenas oito anos, em 1983, sob o pretexto de proteger estudantes de medicina americanos, o presidente Reagan ordenou a invasão da minúscula ilha caribenha de Granada. (…) Menos de um mês depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, no dia 7 de outubro, as FFAA dos Estados Unidos invadiram o Afeganistão. Duas décadas depois, os militares americanos ainda estavam em processo de retirada do país (…). Iraque, 2003: os EUA e uns tantos aliados, sem autorização da ONU (o que, afinal, não faz muita diferença), ocuparam o país. Num grandioso show midiático forneceram evidências falsas para convencer a plateia mundial de que o Iraque estava desenvolvendo armas de destruição em massa. A operação Iraqi Freedom foi lançada em março de 2003. No início de maio, o presidente George W. Bush (o filho) anunciou a conclusão da fase ativa das hostilidades. (…) Líbia, 2011: em fevereiro, o conflito armado entre forças do governo de Muammar Kadafi e grupos de oposição financiados pela CIA eclodiu na Líbia. O Conselho de Segurança da ONU adotou uma resolução para impor sanções contra o governo da Líbia. Liderados pelos EUA, os sócios da OTAN iniciaram uma ofensiva de bombardeios contra o território líbio” (A Noite Belga, 2021).

Enquanto isso, recebo de um amigo querido o PDF de um texto do José Luís Fiori (Um Ano Depois: EUA Dobram Sua Aposta, mas a Rússia já ganhou o que queria), também se referindo ao aniversário da invasão da Ucrânia, onde ele, com muito maior precisão que eu, escreve:

  • “No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu o território da Ucrânia e infringiu uma norma básica do Direito Internacional consagrado pelos Acordos de Paz do Pós-II GM, que condena toda e qualquer violação da soberania nacional feita sem a aprovação ou consentimento do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Exatamente da mesma forma como a Inglaterra e a França violaram esse direito, quando invadiram o território do Egito e ocuparam o Canal de Suez, em 1956, (…) violação que ocorreu também quando a União Soviética invadiu a Hungria, em 1956, e a Tchecoslováquia, em 1968. Da mesma forma, os Estados Unidos invadiram Santo Domingo, em 1965, e de novo, invadiram e bombardearam os territórios do Vietnã e do Camboja durante toda a década de 60 (…) apenas para relembrar alguns casos mais conhecidos de invasões ocorridas sem o consentimento do Conselho de Segurança da ONU. (…) O que passou, entretanto, é que depois do fim da Guerra Fria, esse ‘direito à invasão’ transformou-se num monopólio quase exclusivo dos Estados Unidos (…). Basta dizer que, nos últimos 30 anos, os Estados Unidos (…) invadiram sucessivamente (…): o território da Somália, em 1993 (…); do Afeganistão, em 2001 (…); do Iraque, em 2003 (…), da Líbia, em 2011 (…); da Síria, em 2015 (…); e finalmente, do Iêmen (…). O que surpreende em todos estes casos é que, com exceção da invasão anglo-americana do Iraque, em 2003, que provocou uma reação mundial e teve a oposição da Alemanha, as demais invasões iniciadas pelos Estados Unidos nunca provocaram uma reação tão violenta e coesa das elites euro-americanas, como a recente invasão russa do território da Ucrânia.”

Mas, a essa altura, quem é que se interessa pelos fatos da história, se nem sequer nos perguntamos quem é que decide o que é mostrado e o que não é mostrado sobre a guerra e o campo de batalha? A ninguém parece importar o que nos contam e o que deixam de nos contar, mostram ou deixam de mostrar. A ninguém espanta que a guerra, ela mesma, os combates, os estampidos dos disparos, os corpos dilacerados, praticamente não nos sejam mostrados. Porque, sim, tem que estar havendo homens e mulheres disparando suas armas uns contra os outros, matando e morrendo. As imagens dos cadáveres exibidas (poucos e quase todos civis) são cuidadosamente selecionadas, e a ninguém interessa se perguntar quem é o maestro por detrás do show, aquele que move a batuta para levar ao ar a dor das vítimas e a crueldade dos verdugos, o bem e o mal de acordo com os interesses em jogo. O que mostram as imagens, de novo, cuidadosamente editadas, é apenas a movimentação e a ação das máquinas, as explosões das bombas, as ruínas dos edifícios e das cidades (quem sabe para que os futuros reconstrutores já possam desde agora dar início à prospecção dos lucros) – curiosamente nestes últimos dias, justo quando nos aproximamos da celebração desse primeiro aniversário da guerra (sim, há muita, muita gente celebrando essa guerra: a Rheinmetall, por exemplo, fabricante alemã dos famigerados tanques Leopard [2], mas também seus compadres deste e do outro lado do Atlântico [3], os noticiários começaram a mostrar aqui e ali minguadas imagens de um ou outro combate desde o campo de batalha. Sabe-se lá por qual razão.

A verdade é que passamos 365 dias sob um intenso bombardeio de informações, que a qualquer sujeito minimamente são, mais pareciam boletins publicados por um comitê de imprensa da OTAN, ou seja lá o que for, e emitidos a toque de caixa. Houve momentos em que uma decisão da aliança militar comandada pelos americanos era anunciada na noite do domingo, por exemplo, e como num de passe de mágica, na manhã de segunda-feira já se viam as consequências da sua implementação plenamente amadurecidas – nenhum senso crítico fazia ao editor da notícia notar que entre a tomada da decisão, a implementação da ação e a produção dos resultados tardaria, pelo menos e no melhor dos casos, uns tantos dias.

Tamanha desfaçatez numa sociedade tão saturada de informação e capacidade de transmiti-las a grande velocidade só é possível porque definitivamente nenhum pensamento crítico parece poder existir mais. Estamos anestesiados e amolecidos. Somos a um só tempo vítimas e cúmplices de uma guerra cujo alcance vai muito além desse ano que se iniciou em fevereiro de 2022 e que ultrapassa em muito as fronteiras ucranianas.

[1] O grande jornalista inglês é autor de uma das mais espetaculares reportagens do século XX, Homenagem a Catalunha, sobre a guerra civil espanhola.
[2] Segundo se noticia, a empresa teve uma revalorização em Bolsa de 213,8% a partir de fevereiro de 2022.
[3] Em meados de dezembro passado, o Senado americano aprovou o orçamento de 2023 para a defesa com a OTAN e a guerra da Ucrânia como estrelas. O valor de 858 bilhões de dólares é o maior da história. O orçamento de 2022 havia sido de 750 bilhões.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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