O IBGE divulgou, nesta semana, resultados inéditos sobre orientação sexual da população adulta brasileira a partir de uma pesquisa domiciliar de abrangência nacional – a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) –, que foi a campo em 2019 com uma amostra de 108 mil domicílios.
Seguindo as boas práticas internacionais sobre temas emergentes, os dados são considerados “estatísticas experimentais”, ou seja, ainda estão sob avaliação porque, segundo o próprio Instituto, “não atingiram um grau completo de maturidade em termos de harmonização, cobertura ou metodologia”. Mas, sem dúvida, é um passo importante para avançarmos no debate das questões de gênero no país, de forma mais pautada em evidências empíricas e com menos amarras ideológicas.
Antes, porém, é importante ter em mente os conceitos, para saber o que se está medindo. Orientação sexual remete à afetividade e à sexualidade. Pelo Guia da Diversidade LGBT da Prefeitura do Rio, orientação sexual é a “capacidade de ter, sentir ou desenvolver atração e/ou relação emocional, afetiva ou sexual por outra(s) pessoa(s)”. Heterossexuais sentem atração e/ou se relacionam com pessoas de gênero ou sexo diferente ao seu, designado ao nascer. Para homossexuais, a relação ou atração se dá entre pessoas de mesmo gênero ou sexo e, para bissexuais, relação e/ou atração por mais de um sexo ou gênero.
A PNS/IBGE permitiu, ainda, a sinalização de outra orientação, que pode estar associada, por exemplo, às pessoas assexuais “que sentem pouca ou nenhuma atração ou necessidade de se relacionar”. Homossexuais do sexo masculino são também denominados gays e do sexo feminino, lésbicas. Essas denominações aparecem no conhecido e crescente acrônimo LGBTQI+[1], no qual cada letra corresponde a uma identidade de gênero.
Essa identidade, não investigada pela pesquisa, refere-se a como a pessoa se reconhece e/ou se apresenta e pode corresponder ou não ao sexo designado ao nascer e associar-se a distintas orientações sexuais. Ou seja, a identidade de gênero remete ao que somos e como nos vemos, a orientação sexual por quem nos interessamos.

Fonte: Guia da Diversidade LGBT (Prefeitura do Rio)
Dito isso, em 2019, quase três milhões de pessoas de 18 anos ou mais de idade (1,8%) se autodeclararam bissexuais ou homossexuais no Brasil (1,9% entre os homens e 1,8% entre as mulheres), 94,8% heterossexuais e 0,1% declararam outra orientação sexual.
Homens tenderam a se autodeclarar mais como homossexuais e mulheres mais como bissexuais. Entre as pessoas mais jovens (18 a 29 anos) o percentual de homossexuais e bissexuais foi maior (4,8%), assim como entre as pessoas com ensino superior concluído (3,2%) e com maiores rendimentos. Apenas 0,5% das pessoas sem instrução ou com fundamental incompleto se autodeclararam homossexuais ou bissexuais.
Em questões de foro íntimo, a autodeclaração é fundamental e isso traz um desafio para as pesquisas estatísticas. A própria pessoa deve responder à pergunta sobre sua orientação sexual, situação permitida pela PNS/IBGE que investiga diversos aspectos da saúde da população brasileira a partir da seleção de um morador adulto no domicílio como respondente.
Esse é também o principal motivo da não inclusão desse tipo de investigação em pesquisas domiciliares como o Censo Demográfico ou a PNAD Contínua, nas quais o morador que atende ao entrevistador responde pelos demais do domicílio. Não faz sentido perguntar a uma mãe a orientação sexual de seus filhos, por exemplo. Ademais, no âmbito de uma pesquisa amostral probabilística, a pessoa que responde precisa ser a selecionada para entrevista e não simplesmente quem recebe o entrevistador.
Boa parte dos poucos países que conseguiram avançar nesse tipo de investigação percorreu essa trajetória de iniciar de forma experimental em pesquisas de saúde, não apenas com o intuito de quantificar esse grupo populacional, até então invisibilizado nas estatísticas oficiais, mas também para subsidiar políticas públicas, principalmente nas áreas de saúde, justiça e direitos humanos.
Os percentuais encontrados pela PNS/IBGE são consistentes com as evidências internacionais, conforme apontado pelos relatórios da própria pesquisa e o Society at a Glance 2019 da OCDE. No Reino Unido, com maior experiência nessa investigação, em 2018, 2,5% dos homens e 2,0% das mulheres eram homossexuais ou bissexuais. No Chile, em 2017, os percentuais eram de 1,8% e 1,5% respectivamente.
Importante lembrar que são dados sujeitos à subdeclaração. Muitos ainda não se se sentem seguros em responder sobre sua orientação sexual em função do desconhecimento de como essa informação será utilizada, do estigma, do julgamento, da discriminação. Como a PNS/IBGE investiga também questões sensíveis como violências sofridas e atividade sexual, já existe nela um protocolo para que o entrevistador se assegure da privacidade da pessoa no momento da entrevista, o que nem sempre é possível.
Não é à toa o medo da identificação pública, considerando os atuais dados sobre violência contra a população LGBTQI+. As variáveis gênero e orientação sexual foram incorporadas nos formulários dos sistemas de saúde apenas em 2014. Em 2019, foram notificados 4.344 casos de violência contra homossexuais e 986 contra bissexuais, um aumento de, respectivamente, 5% e 37% em relação a 2018 (Atlas da Segurança Pública, 2021).
Por sua vez, a coleta de informações via registros policiais também é recente e muito desigual entre os estados. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 mostrou um crescimento de mais de 20% nos crimes contra população LGBTQI+ entre 2019 e 2020. Em 2020, foram computados 1.169 lesões corporais dolosas, 121 homicídios dolosos e 88 estupros, porém, oito estados não apresentaram informações sobre esse tipo de crime.
Além da ausência de dados, o relatório aponta a sua baixa qualidade devido à “má vontade e/ou falta de capacitação para o preenchimento de campos relativos à orientação sexual e identidade de gênero”. Outra pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (“Política e fé entre os policiais militares, civis e federais do Brasil” ) monitorou quase 3 milhões de interações nas redes sociais de uma amostra de 879 perfis de profissionais de segurança pública. Os comentários contrários às pautas LGBT estavam entre os assuntos mais compartilhados por policiais militares.
Para além do âmbito da justiça criminal, a “Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais”, de 2013, reforça a orientação sexual e a identidade de gênero como determinantes sociais da saúde e aponta ações específicas para esse grupo populacional, que vão desde as consequências do estigma e exclusão social (saúde mental, exposição a infecções e doenças sexualmente transmissíveis, uso de drogas, violências), às relacionadas às transições de gênero (uso de hormônios, silicones industriais e procedimentos cirúrgicos).
Entretanto, essa pauta não aparece na estrutura formal do Ministério da Saúde desde 2019, quando foi extinta a secretaria na qual estavam explicitamente lotadas as políticas de saúde LGBT (SGEP). No atual Departamento de Ações Programáticas Estratégicas (DAPES), na Secretaria de Atenção Primária à Saúde, estão alocadas as políticas relacionadas a “ciclo de vida” (crianças, adolescentes, mulheres e idosos) e ações voltadas às populações vulneráveis (sistema prisional e pessoas com deficiência). Não há qualquer menção à população LGBTQI+.
Essa invisibilização também acontece no Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos. O Departamento de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais sequer consta atualmente do organograma da Secretaria Nacional de Proteção Global, à qual está subordinado, e não há qualquer ação ou programa listado no site sob sua coordenação. Vitória do viés ideológico-religioso-conservador que transversaliza a gestão de políticas públicas no atual governo. Uma invisibilidade planejada que os dados recém-divulgados podem ajudar a combater.
No entanto, é preciso investir tempo e recursos para a superação dos desafios metodológicos que surgem e, principalmente, educar agentes públicos para a diversidade, promover o aprendizado institucional e quebrar barreiras e preconceitos na captação da informação. Também é preciso investir na capacitação e treinamento de profissionais que atuam “na ponta” como entrevistadores, agentes de segurança, profissionais de saúde e demais servidores do Estado de forma que formulários e questionários sejam preenchidos de forma adequada. E avançar nos estudos sobre novas metodologias de coleta para que as pessoas se sintam mais confiantes em prestar informações sensíveis sem medo de serem julgadas e/ou estigmatizadas.
Além disso, é imprescindível conscientizar e informar a população sobre a importância da sua autodeclaração, assegurando o sigilo dos dados e uso apenas para fins estatísticos. Cerca de 1,7 milhão de pessoas não souberam responder à pergunta sobre orientação sexual na PNS/IBGE e 3,6 milhões se recusaram a responder. Relatos do trabalho de campo da pesquisa dão conta da dificuldade de entendimento dos conceitos, principalmente entre os menos escolarizados. O debate impregnado de ideologias transforma o tema em tabu e impede que se avance na educação sexual nas escolas e na maior democratização do acesso à informação.
Um sistema nacional de informações estatísticas deve prover um “retrato da sociedade” em que todos se reconheçam e a partir do qual políticas públicas possam ser planejadas e empiricamente referidas. Para isso, o único caminho é INVESTIR em recursos humanos e financeiros que permitam a realização de testes, pesquisas específicas, seminários, consultas públicas, capacitação de agentes públicos, fóruns de discussão e campanhas de conscientização da população. É preciso ampliar o diálogo entre produtores e usuários das informações públicas para que se evite o desgaste da crescente judicialização de demandas e se favoreça a construção coletiva do conhecimento.
É difícil também avançar nos temas emergentes quando se tem que travar uma luta para fazer o básico – vide o recente imbróglio para a realização do Censo Demográfico. A estruturação de um sistema nacional de estatísticas, autônomo e com orçamento garantido, precisa ser um compromisso público. Temos capacidade para isso. Falta é vontade política mesmo.
Nota:
[1] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, travestis e transgêneros, Queer, Intersexo, + (outros grupos e variações de sexualidade e gênero)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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