Talvez já estivesse escrito que o psicanalista Tales Ab’Sáber iria buscar as raízes do país para fazer um retrato. Ele define seu mais novo livro como “uma viagem pela mentalidade escravista do Brasil nos primeiros anos da Independência”. Um estudo de como se formou a consciência nacional que possa responder a pergunta “Que país é esse?”. O autor recua no distante passado não só porque é um entusiasmado por História, mas também porque sabe o quanto a personalidade de cada um está enraizada no passado. Ir às raízes de uma pessoa, de uma família, de um povo, envolve as origens, a formação, mesmo sendo cada estudo diferente. O livro revela a genealogia da crueldade brasileira, tão escondida mas evidente nos elogios à tortura, e ao estupro.

Tales já publicou livros sobre os três últimos ex-presidentes, Lula, Dilma e Temer, além do livro “O sonhar restaurado”, vencedor de um Prêmio Jabuti em 2006. E, após muito estudar sobre a História brasileira, apresenta agora “O soldado antropofágico: escravidão e não pensamento no Brasil”, sobre o século XIX, logo após a Independência. Não é comum que um psicanalista tente entender um país, sabendo o quanto é difícil pensar um analisando ou a si mesmo. Tales não é um psicanalista comum – temos hoje vários psicanalistas criativos e implicados com o País –, pois tem um amplo espectro de estudos além da psicanálise, como arte, filosofia e história. O Brasil convive entre o pesadelo – escravidão, desigualdade social e violência – e um sonho de superação, um sonho de futuro que parece chegar em alguns momentos da História. Li sobre o pesadelo e o futuro também no impactante livro da amiga psicanalista Isildinha Baptista Nogueira, que escreve sobre sua experiência pessoal e de suas analisandas:  “A cor do inconsciente: significações do corpo negro”.

A escravidão que durou três séculos e meio foi um tema proibido, gerando um anti-intelectualismo onde se negou o racismo. Não se escrevia a respeito, e buscava-se ocultar, silenciar o sadismo e a maldade contra os negros, índios, propagando que aqui era o país do samba e do futebol. Foi na leitura pacienciosa do livro “O Rio de Janeiro como é” (1824-1826), do soldado alemão Carl Schlichthorst, que Tales foi aprendendo nos detalhes o gozo, o erotismo e a cultura descritos naqueles anos. Impossível entender que país é esse sem estudar os primeiros retratos do Brasil, que Tales Ab’Sáber fotografa a partir de livros como esse. É um retrato que se vê ao ler uma negra escravizada que dança, canta, recita e vende doces que encanta o soldado alemão. Poesia pura nas ruas do Rio em que convivem a pior das violências e o sonho de um paraíso. Esse livro foi um presente do pai de Tales, Aziz Nacib Ab’Sáber, geógrafo e ecologista, vencedor de prêmios nacionais e internacionais. Aziz passou ao filho sua paixão pela nação e os livros, daí ambos buscarem respostas à pergunta “Que país é esse?”.

Pode ser que o Brasil tenha uma doença crônica – três séculos e meio de escravidão tema central desse livro. Uma das tantas histórias que fui averiguar a partir da leitura é porque o Patrono da Independência – José Bonifácio de Andrade e Silva – foi exilado por seis anos, entre 1823 e 1829. O deputado da Constituinte era a favor da abolição da escravatura, pela reforma agrária, além de pôr limites nos poderes do Imperador Dom Pedro I. Integrava uma pequena elite do progresso que encontrou forte resistência até do Imperador, que fechou o Congresso e excluiu do poder José Bonifácio.

Um dos diagnósticos presentes no livro foi sintetizado por Luiz Felipe de Alencastro, um historiador referência para Tales e todos que estudam o País, que disse numa entrevista em 1996: “A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada e a saúde também”. Um país todo privatizado é a destruição do público, do SUS que salva os pobres e muitos ricos-como ocorre na pandemia- da educação pública, das cotas raciais. O Brasil deve ser para todas e todos, sem discriminação racial, política ou preconceito com os pobres.

Creio que Tales Ab’Saber estaria de acordo que o desafio hoje é entre o elogio das armas, da exploração destrutiva da natureza, versus o humanismo e a ecologia. Desesperar, jamais, pois não se pode esquecer que depois de hoje virá o amanhã, depois do pesadelo voltará o sonho de um povo que caminha na escuridão com esperança no coração. (Publicado no DOC da Zero Hora de 06 /07 de 2022)

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Ilustração: Mihai Cauli
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