O tema central da condição humana talvez seja o da crueldade, na qual imperam as pulsões destrutivas. Há uma sedução por líderes, movimentos que amam o ódio, a violência, a divisão. Esse é uma questão estudada por Walter Benjamin, entre outros, a partir das guerras mundiais. Uma brecha diante da soberana crueldade são as formas de enfrentá-la, como pode ser a história a seguir.

Nos campos de concentração nazista houve traidores, os Kapòs, os que mantiveram a fé, os que perderam, os corajosos e até alguns sábios. Foi o caso do ex-sargento Steinlauf, que revelou sua sabedoria numa conversa com o futuro escritor Primo Levi em Auschwitz. Um dia, o autor do livro “É isso um homem?” caminhava desanimado pelo lavatório, quando viu o amigo esfregando-se com energia, sem sabão, mas muito concentrado. Steinlauf perguntou ao Levi por que não se lavava, e ele indagou por que devia se lavar, se viveria mais se o fizesse, que lavar-se era uma tolice, uma futilidade. Steinlauf passou-lhe uma descompostura, disse que o campo é uma engrenagem para transformar seres humanos em animais, mas que pessoas não devem se transformar em animais. Concluiu assim: “Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo, justamente por ser a última: a opção de recusar nosso consentimento. Portanto, devemos nos lavar sim, ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim reza o regulamento, e sim por dignidade e alinho. Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer”.

Nos campos de concentração havia tanta crueldade que muitos ficaram abatidos, perderam a vontade de viver. Primo Levi, que passou 11 meses preso em Auschwitz, pôde escrever durante 42 anos uma obra, ajudado pelas palavras do sargento. Mudou seu comportamento diante da morte quase certa, também por ser químico, pois foi aproveitado na farmácia do campo e contou com a sorte, claro. Seus livros têm sido muito lidos nos mais variados países, é um dos grandes narradores do século passado.

O diálogo entre Primo Levi e Steinlauf abre questões sobre a dignidade, um valor moral, frente à questão de recusar o consentimento diante de um estado de exceção. Em um mundo sombrio como o nosso, cada um tem a opção de se posicionar a favor, contra ou indiferente quanto à dignidade de todo ser humano. Não encontro respostas fáceis ao comportamento que envolva atitudes subjetivas diante da política, mas creio conveniente abrir espaços de reflexão. Já tive muitas certezas nessas questões e, aos poucos, elas diminuíram. Entretanto, admirei a coragem do sábio ex-sargento amigo do escritor Primo Levi, com suas palavras marcantes. Nas situações de desamparo, as conversas, as histórias, os laços amorosos são essenciais.

O país começa a recuperar a dignidade diante da crueldade na guerra contra as vacinas, o desprezo aos mortos, a volta da fome e a devastação da natureza. Diante da cumplicidade dos armados e de todos os poderes, cresce o embate contra as ambições por lucros mortíferos. Enfim, começou a reconstrução da esperança e já se imagina um outro amanhã.
( Publicado dia 16.07.2021 no facebook do autor)

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