O ano de 2022 foi, de certa forma, monótono, dentro de suas previsíveis turbulências. O ano começou com a eclosão da guerra na Ucrânia, invadida pelos russos, preocupados com a ampliação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para incorporar as antigas repúblicas soviéticas, e cercando cada vez mais as fronteiras físicas do território russo. E terminou com os russos ainda em esgrima com a OTAN, e dentro do território ucraniano.
O começo da guerra, no final de fevereiro, se somou a uma série de incertezas que já estavam no cenário: as instabilidades sanitárias relativas às idas e vindas da Covid-19 em vários países do mundo; as rupturas das cadeias globais de produção (afetadas pela Covid, por crises de containers, e outros fatores); as avaliações quanto à crise financeira internacional, motivada por apostas a respeito das alterações advindas da mudança de patamar dos níveis de inflação nos vários países, em especial nos países hegemônicos no mundo da globalização financeira, como EUA, países europeus e outros; e a substituição de um regime de taxas de juros muito baixas e até negativas, em alguns casos, por outro de altas taxas de juros, com o discurso do combate á inflação. Desse último processo é esperado como consequência um travamento ainda maior da economia mundial em 2023.
A guerra reforçou esses efeitos. A interrupção da participação da Ucrânia em vários mercados mundiais, em especial de commodities agrícolas, afetou mais ainda preços e interrompeu cadeias de produção globais. As sanções à Rússia afetaram também nesse sentido, em especial as cadeias globais de energia (petróleo e gás). Aqui, os principais afetados foram os países europeus. A subida dos preços, agravada com a interrupção da produção, colocou o problema da inflação de forma ampliada – e mais complicado, porque o receituário convencional, aumentar os juros, não faz efeito nesse caso em que os preços não aumentam por demanda, mas por inexistência e/ou escassez dos produtos.
Ainda a respeito da guerra, a utilização das finanças internacionais, em especial o dólar e o instrumental financeiro de compensações internacionais sob controle dos EUA, como instrumentos de sanção contra a Rússia, colocaram países e setores com a pulga atrás da orelha – quem será o próximo a ter contra si o peso das decisões dos EUA? Esse movimento acabou por desacreditar o sistema montado a partir de Bretton Woods sob a hegemonia estadunidense no campo da institucionalidade financeira, incentivando a busca de alternativas e fazendo com que todo o sistema se depare com ainda mais incertezas e instabilidades.
O prolongamento da guerra também colocou algumas questões no campo militar. Toda guerra, em especial as prolongadas, é um mostruário de inovações de armas militares, uma das indústrias dinâmicas no mundo. E aqui se viu a disputa pelos países para aparecer, de um lado ou de outro da guerra. Serve para essa guerra, mas também servirá para atiçar a cobiça dos países que querem se armar e rearmar continuamente. Assim, não só russos e estadunidenses desfilaram no cenário da guerra suas armas ofensivas e defensivas nesse gigantesco showroom, como mesmo outros produtos fizeram na guerra o seu marketing para ficarem conhecidos na memória de consumidores e não-consumidores desses produtos – só para dar um exemplo, quem leu sobre a guerra na Ucrânia e não leu nas matérias algo sobre os tais “drones iranianos”?
A guerra começou (na verdade, continuou os movimentos já antes verificados em 2014) sob a discussão da OTAN na fronteira russa, e das ameaças entre russos e OTAN. E, para quem ler as matérias recentes, segue no mesmo diapasão. A presença cada vez maior de “suporte técnico” da OTAN (leia-se, em geral, militares capazes de ajudar os ucranianos a operarem as armas que conseguem junto aos países da OTAN) vai ampliando o risco de “escaramuças” diretas entre militares de países membros da OTAN e as forças russas. Forças, aliás, que com o novo recrutamento determinado no segundo semestre pelo presidente russo Putin, aumentarão em até 300 mil soldados os efetivos russos para a guerra na Ucrânia, de acordo com algumas estimativas.
Apesar de aumentar sua musculatura de intervenção com mais soldados, os russos parecem seguir uma “guerra tática”, minando a capacidade de resistência ucraniana, desfazendo a infraestrutura do país, em especial no campo da energia, contando a seu favor mais uma vez com o inverno, quando o desmonte da capacidade de luz e aquecimento pode afetar profundamente a moral dos ucranianos, em uma região bastante fria. E, se essa de fato for a opção, a guerra pode se prolongar, pois nesse momento em que se enfrentará três longos meses de inverno, é a hora em que essa opção pode se mostrar mais efetiva em termos de impacto.
Assim, frustrando tanto os que achavam que a guerra seria curta pelo poder militar ofensivo russo, quanto os que achavam que, no caso de não conseguir seus objetivos rapidamente os russos se frustrariam, e adviria uma crise política na Rússia, a guerra se prolonga. Não que o mundo de fato esteja se preocupando muito com os dilemas dos ucranianos e russos. Mas o fato é que os efeitos geopolíticos, econômico-financeiros e de reestruturação da produção mundial vão seguir por muito mais tempo. Mais do que uma solução para a guerra, os que apostavam em soluções rápidas no início, de fato gostariam de que a guerra tivesse sido um parênteses, e os negócios pudessem voltar ao ritmo de antes, em especial na Europa. Não parece ser o caso. A guerra se prolonga, e seus efeitos serão ainda mais profundos e duradouros, nos mais variados campos.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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