Que sera, sera / Whatever will be, will be / The future’s not ours to see (Doris Day e Frank de Vol)

Estamos iniciando não apenas um novo ano, mas uma nova década. Neste período, é comum o surgimento de tentativas de prever o que vai ocorrer no futuro, próximo ou não. A perspectiva de superação da pandemia de Covid-19 aguçou este interesse.

Desde os primórdios dos tempos, uma das obsessões do ser humano é prever o futuro. Da astrologia, passando pelas cartas de tarô ou folhas de chá até as modernas previsões de futurólogos, baseadas na análise de dados com o auxílio de computadores. Em alguns campos, a tecnologia trouxe avanços, como é o caso da meteorologia que hoje permite prognosticar condições do tempo com relativa exatidão para períodos de algumas semanas.

Quanto às predições que envolvem a ação humana, tanto no futebol como na política, os avanços ainda são moderados. Nas ciências humanas em geral, por mais que os economistas tentem parecer parte de uma ciência exata com o abuso de modelos matemáticos, os limites da predição estão dados pelo conhecimento do passado, pelo acesso a dados confiáveis sobre o presente e sobre quais teorias aplicar para usar estes meios para prever os acontecimentos futuros.

Uma das formas mais exploradas de tentativa de previsão, comum nos meios de comunicação, mas sujeita a muitas chuvas e trovoadas inesperadas, é a simples comparação com o passado, na expectativa de que a história esteja se repetindo.

Quando ocorreu a crise de mercado de capitais a partir de 2008, muitos analistas traçaram paralelos com a crise de 1930. A chegada ao poder, em vários países, de lideranças de direita com discursos radicais (o termo populista passou a ser utilizado de forma indiscriminada para etiquetar tudo o que parecia diferente, seja à direita, seja à esquerda) a partir da metade da última década – com destaques para as eleições de Trump e de Duterte em 2016, de Bolsonaro e a entrada de Salvini na aliança de governo na Itália em 2018, a vitória do Brexit e posterior escolha de Boris Johnson como primeiro-ministro, a votação crescente de Vox na Espanha, da Alternative für Deutschland e do Front National na França – trouxeram comparações com a ascensão do nazismo (e o aparente esquecimento de que Mussolini chegou ao poder em 1922, uma década antes) e avisos de que uma nova era de fascismo estaria se instaurando.

Finda a década, Salvini está na oposição, Trump não apenas foi derrotado, mas pode ser expulso do jogo e proibido de concorrer novamente devido aos excessos nas manifestações de seus apoiadores no Congresso dos EUA. Boris Johnson mantém uma maioria confortável no parlamento que garante sua sobrevida, mas sua credibilidade vem sendo contestada devido aos erros na condução da pandemia. Ainda que partidos de extrema direita como Vox, AfD e o agora denominado Rassemblement National mantenham sua popularidade, não há indicativos de que venham em futuro próximo ganhar eleições ou participar ativamente de algum governo. Ao contrário, na Grécia, a Aurora Dourada foi posta na ilegalidade e alguns de seus dirigentes podem cumprir penas de prisão. O neonazismo não parece tão ameaçador agora como há cinco anos.

O futuro de nosso Capitão ainda é uma incógnita, mas a necessidade de buscar apoio do Centrão para sobreviver politicamente, o esgotamento dos recursos para distribuir benefícios sociais que comprem popularidade e o precedente do silenciamento de Trump nas principais redes sociais que usava para inflamar seus seguidores são indicativos de que o caminho para uma reeleição terá muitos obstáculos, algum dos quais pode ser intransponível.

Com o início da vacinação contra o vírus Sars-Cov-2 iniciada na virada do ano de 2020 para 2021, começaram as previsões de retomada do crescimento econômico. Mas não contentes em prever uma recuperação da economia, alguns economistas já projetam uma década áurea, com uma espécie de dez anos gloriosos pela frente. Sociólogos e psicólogos propõem a emergência de uma nova “Belle Époque”, com o fim de um ano de angústias e restrições à circulação e ao contato interpessoal sendo substituído por um frenesi de busca pelo tempo perdido, que poderia favorecer a criatividade, ou uma hipersexualidade com a exploração de novos relacionamentos.

O estudo de eventos históricos e a análise comparativa diacrônica são elementos fundamentais para entender o presente e fazer projeções sobre os cenários possíveis para o futuro. Mas não são uma bola de cristal. A realidade é demasiado complexa para que a existência de um fator semelhante em duas situações históricas possa automaticamente ser a chave para a repetição dos eventos.

Em 1920 e em 2020, a humanidade foi varrida por pandemias devastadoras, com consequências graves para o bem-estar e o desenvolvimento econômico. No primeiro caso, a doença somou-se aos resultados de uma guerra sangrenta. A década que se seguiu foi de crescimento econômico e de criatividade artística.

Mas além das semelhanças, é preciso considerar as diferenças. Em primeiro lugar, diferentemente do que as teorias ortodoxas da economia costumam considerar, o ser humano não é igual em todas as partes. Há diferenças de culturas e o comportamento influi no funcionamento das estruturas institucionais que governam cada país.

As reações necessárias à prevenção e ao combate da pandemia, para o bem e para o mal, foram muito diferentes nas diversas partes do mundo. Enquanto países como China, Vietnã, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Uruguai adotaram medidas que controlaram efetivamente a disseminação do vírus e o número de mortes, seja pela capacidade de imposição de medidas duras, seja pela cooperação da população com governos aceitos como legítimos, em outros casos, a população negou-se a cumprir medidas de distanciamento, ou mesmo fez manifestações públicas contrárias às autoridades que as determinaram. Em casos extremos, como Brasil, Estados Unidos da América e México, os próprios presidentes estavam entre os negacionistas que divulgavam notícias falsas e provocaram reações caóticas e descoordenadas, deixando aos outros níveis de governo a tomada de decisões.

Por outro lado, as condições de infraestrutura e disponibilidade de recursos também não são iguais para todos. A produção de vacinas eficazes é uma ótima notícia, mas sua distribuição para a população, em especial nos países mais pobres, é um desafio maior que o enfrentado até o momento pelos chamados Objetivos de Desenvolvimento da ONU, que, aliás, já vinham com grande atraso na implantação.

Portanto, em primeiro lugar, ao pensar no que vai ocorrer na próxima década, é preciso pensar em vários cenários. Não se pode descartar que exista um período de crescimento sustentado, acompanhado de uma retomada do prazer de viver, junto ou não com viver do prazer. Porém, este não é um cenário provável, pelo menos de forma extensiva ao mundo como um todo.

Quanto ao surgimento de uma nova “Belle Époque”, algumas das condições para o desenvolvimento da criatividade já estavam dadas nos últimos anos, com a disseminação de novas tecnologias e de redes sociais que permitiram que com poucos recursos seja possível produzir e distribuir músicas, vídeos ou divulgar produções artísticas sem a necessidade do apoio de grandes corporações da produção cultural. Mesmo algumas destas corporações, como Netflix, beneficiadas pela pandemia, favoreceram a produção local em diferentes línguas pela necessidade de oferta de conteúdo.

A mudança de comportamento ou o surgimento de uma era de liberação sexual depende da cultura de cada país e de como os comportamentos tradicionais foram ou não afetados pela pandemia. Se em alguns casos medidas de restrição da circulação foram duras e afetaram uma população acostumada à liberdade de circulação, como os europeus privados de suas férias nas praias de Maiorca ou Canárias, em outros pouco mudou. Brasileiros e mexicanos, na maioria dos casos, mantiveram seu cotidiano em ônibus lotados nas grandes cidades e viagens para fora de seu lugar de moradia continuam sendo sonhos raros e pagos em prestações. Para estes, o que muda é o medo de ir para um sistema de saúde colapsado, mas a vida cotidiana continuará a mesma.

Alguns países devem aproveitar mais do que outros a retomada da economia. A China deve ser dos poucos países com crescimento do PIB em 2020. Isto deve acelerar o processo de superação dos EUA como maior economia do mundo. Países que conseguirem imunizar suas populações terão vantagem na retomada de atividades cotidianas, como a abertura de restaurantes, cinemas ou museus e o aquecimento do turismo, sem contar a redução dos gastos e da pressão sobre os sistemas de saúde.

O cenário mais provável é de um aumento do desequilíbrio no desenvolvimento econômico, que deve prejudicar não apenas os usuais suspeitos, os países mais pobres, mas também gigantes que enfrentaram a pandemia de forma desorganizada ou inepta, sendo candidatos a este posto países como Brasil, Índia, Estados Unidos da América e Reino Unido.

Mas projeções não são fatalidades. Estes resultados também dependem dos cidadãos, das elites políticas e econômicas e das decisões tomadas pelos governos. Que as marcas do passado sejam superadas ou sejam reforçadas não é decidido pelos astros ou pelas cartas, mas pela decisão dos indivíduos de coletivamente construírem o seu futuro e não apenas esperarem que ele chegue.

Me cobrem dentro de dez anos para ver se estava errado.

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