Antes de entrar no tema, preciso fazer dois comentários gerais. O primeiro deles trata do processo de transformação de conceitos, acadêmicos ou não, propostas, ideias, etc., relativas a um determinado assunto, em políticas públicas implementadas. Penso que não se trata de um fato comum. Provavelmente algo bastante raro, mesmo em áreas aplicadas. O segundo comentário diz respeito às modificações que políticas implementadas sofrem com o tempo, em particular políticas de duração mais longa. Estes ajustes são bastante comuns e necessários para seu aperfeiçoamento. O texto a seguir tem a ver com esses dois comentários. A nova estratégia para o CEIS (Complexo Econômico Industrial da Saúde) é uma proposta de política pública baseada em uma construção conceitual temporalmente anterior, ao mesmo tempo em que, enquanto política implementada, é um desenvolvimento importante de iniciativas originadas também anteriormente. Conceitos e política – ambos nasceram durante a primeira década deste século.

A estratégia ora lançada para lidar com o CEIS é um passo adiante na interpretação das relações entre a ampliação do acesso a bens e serviços de saúde e o desenvolvimento científico, tecnológico e produtivo nesse campo e está centrada no gestor federal do Sistema Único de Saúde (SUS). Enquanto política pública, essas relações se estruturaram com a criação da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos no Ministério da Saúde (MS) em 2003, do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde em 2007 e da Política de Desenvolvimento Produtivo em 2008. A política adquiriu regulamentação adequada em 2012 e, após retrocessos entre 2018 e 2022, retorna enriquecida em sua nova versão, agora estruturada numa estratégia mais ampla.

No meu ponto de vista, aquilo que talvez seja a maior aquisição é a sua ancoragem institucional, na qual a estratégia para o CEIS está colocada em posição privilegiada no cenário da Nova Indústria Brasil (NIB), vale dizer, da política industrial brasileira, como uma de suas seis missões. Dito de outro modo, a estratégia para o CEIS se desloca de ser uma política industrial do SUS tornando-se um componente da política industrial brasileira nos capítulos em que o SUS é o componente central. Nessa vertente, o desafio está em sustentar essa nova e ampliada articulação.

A decisão de ancorar a estratégia para o CEIS na política industrial brasileira necessita da permanência e da estabilidade da âncora. O fortalecimento da NIB torna-se, portanto, também um desafio para a estratégia. Uma estratégia política amadurece quando é reconhecida como estável e indispensável, não apenas pelos governos e pelos atores diretamente vinculados a ela, mas também pela população em geral. Quanto a isso, a estratégia para o CEIS terá que buscar esse amadurecimento ao longo do tempo. No Brasil, ciência, tecnologia, inovação e produção industrial não são temas que estão no centro do cenário político, mas a saúde está. Particularmente após a tragédia da pandemia de COVID e o papel do SUS no seu enfrentamento, especialmente no que se refere às tecnologias do cuidado, principalmente dos respiradores e das vacinas, o tema deslocou-se para o centro da cena. É também um desafio para a estratégia para o CEIS contribuir para que aí permaneça. Em outros termos, fortalecer o SUS é fortalecer o CEIS. E vice-versa.

A construção da agenda de prioridades da estratégia para o CEIS organiza-se segundo Blocos (que são dois), Plataformas e Produtos. Na minha percepção, o primeiro Bloco (Preparação para Emergências Sanitárias) foi proposto ainda sobre o impacto da pandemia de COVID e na certeza de que haverá a eclosão de novas emergências sanitárias de grandes dimensões. Indispensável, portanto, ter lugar de destaque na agenda. Mas é no segundo Bloco (Doenças e Agravos Críticos para o SUS) que se situa o que penso ser o núcleo da agenda. As prioridades contidas nesse bloco são amplas, o que me parece correto, mas nem todas as doenças e nem todos os agravos serão enfrentados ao mesmo tempo. Haverá que escolher nesse amplo cardápio aquilo que será a prioridade da hora, e o processo de escolha será um desafio importante para a estratégia. Ele dependerá de variáveis epidemiológicas, políticas, do estado da técnica, dos recursos humanos e financeiros, etc., escolhas que nunca são óbvias nem fáceis.

Sendo o centro da estratégia a diminuição da dependência nacional de produtos industriais relevantes para o SUS, ela terá que superar as dificuldades de articulação entre a pesquisa e desenvolvimento autóctones e as empresas do complexo da saúde. Este desafio deverá ser enfrentado com um duplo e coordenado movimento. Pelo lado da comunidade de pesquisa científica e tecnológica, é bem conhecida, e não apenas no Brasil, a busca desenfreada por artigos publicados, subproduto das regras que orientam a progressão na carreira universitária e nos institutos de pesquisa, baseadas nesse critério. E muitas vezes os requisitos técnicos para a publicação de um artigo não revestem seu processo de produção de documentação adequada capaz de garantir repetibilidade e potencial acesso futuro à proteção da propriedade no caso de uma associação com uma indústria com vistas a uma inovação. Resumindo, são desenvolvimentos que não atendem ao conceito de ‘Boas Práticas de Pesquisa’. Não é incomum que acordos entre grupos de pesquisa em saúde com indústrias, principalmente no campo biomédico, não prosperem em função dessa dificuldade.

Pelo lado das empresas, é sabido que os empresários brasileiros no campo do CEIS tradicionalmente apresentam forte aversão ao risco e isso muitas vezes dificulta o desenvolvimento e produção locais de itens críticos. No terreno farmacêutico, essa aversão me parece dependente da radicalização das regras de propriedade intelectual (PI) pós-TRIPS e do impacto que essa radicalização teve no Brasil com a nossa mais que permissiva lei de patentes (9.279/96). Mas, o fato é que a indústria farmacêutica de capital nacional – em particular, mas não unicamente, a partir da lei dos genéricos – saiu-se muito bem nessas últimas duas décadas tendo avançado com muita força. Em 1998, dentre as 10 empresas farmacêuticas com maior faturamento no Brasil, apenas uma delas era de capital nacional. Já em 2022, dentre as 18 farmacêuticas com maior valor de mercado no Brasil, 10 eram de capital nacional. Talvez seja chegada a hora dessas empresas participarem mais intensamente do esforço de diminuição de nossa dependência com uma exposição maior ao risco, associando-se a projetos de pesquisa e desenvolvimento realizados aqui no país. Aqui, vale um comentário lateral. Há empresas farmacêuticas brasileiras se internacionalizando, isto é, se associando ou adquirindo ativos no exterior. Considero que é um movimento positivo dependendo do modelo de negócio ajustado. Se a alma do projeto – o design – permanece sob o controle da empresa brasileira, ótimo; se não, penso que não será muito útil para uma estratégia de diminuição de dependência tecnológica.

No entanto, nos últimos anos, há boas notícias nesse terreno, principalmente com o esforço de criação de startups no campo da saúde humana, majoritariamente voltadas para desenvolvimentos vinculados a serviços, mediante os avanços da ciência digital e da inteligência artificial. Mas ainda temos muito a avançar no campo da inovação industrial a partir de acordos entre grupos de pesquisa autóctones e empresas. Talvez a principal avenida que vem se abrindo nos últimos anos é a do desenvolvimento de terapias avançadas, em particular imunoterapias e terapias celulares. Instituições públicas, tais como a Fiocruz, Butantan, Instituto Nacional de Câncer e algumas universidades vêm sendo a ponta de lança nessa área.

Em termos de investimentos em P&D, o complexo industrial global no campo da saúde é superado apenas pelas indústrias da defesa e pelas TICS. Além disso, é brutalmente oligopolizado e, nas últimas décadas, vem se concentrando ainda mais, mediante uma política feroz de fusões, aquisições e de fechamento de unidades produtivas. Em 2021, as 10 maiores empresas farmacêuticas internacionais responderam por 32,7% do mercado mundial e as 20 maiores por 47,5%. No mesmo ano, as 10 maiores empresas de equipamentos e dispositivos médicos responderam por 38,4% do mercado mundial. No campo das vacinas, também em 2021 e impactado pela pandemia de COVID, as 10 maiores empresas responderam por 85% (!) do mercado.

Parte importante dessa concentração decorre de processos de mudança e aperfeiçoamentos tecnológicos – novas plataformas tecnológicas e produtivas no caso de medicamentos e vacinas e integração eletrônica/digital nos dispositivos e equipamentos – mas é resultante também da harmonização mundial dos padrões de PI em benefício dos detentores de patentes proporcionado pela TRIPS a partir de 1994. No Brasil, somou-se a isso a abertura comercial desastrada do início da década de 1990 e esse conjunto de variáveis resultou num importante processo de fechamento de unidades produtivas no campo farmoquímico (empresas de capital nacional) e farmacêutico, restando atualmente às filiais das empresas multinacionais que operam aqui a finalização de medicamentos importados em sua forma acabada e algumas atividades de pesquisa clínica de fase 3.

Esse quadro global faz com que as condições de competição postas para a nova estratégia para o CEIS sejam particularmente difíceis e há, em adição a esse quadro, a atuação dos nossos órgãos de controle que muitas vezes estendem a importante tarefa de garantir isonomia competitiva nas compras governamentais – no nosso caso pelo SUS – a restrições excessivas que podem vir a tolher o domínio tecnológico e produtivo, tanto de empresas de capital nacional quanto de projetos de pesquisa com potencial de se transformarem em produtos e processos inovadores. Este é também um desafio da estratégia, muito embora sua superação não dependa centralmente dela.

A estratégia para o CEIS integra uma rede de outras políticas, dentro e fora do Ministério da Saúde (MS). Sua articulação com elas é também um elemento para o seu sucesso. No meu ponto de vista, as três mais importantes são a política de propriedade intelectual, a cargo do INPI, a política de controle de preços de medicamentos, cuja execução pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) está a cargo da ANVISA e a política de avaliação e incorporação de produtos e processos no SUS, a cargo da própria secretaria do MS que comanda a estratégia do CEIS. Por estar fora do MS – ela está na alçada do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) –, a relação com a política de PI é particularmente importante para o sucesso da estratégia para o CEIS. A boa notícia é que a inclusão da estratégia no ambiente da NIB, cuja coordenação também está no MDIC, pode facilitar essa articulação. Vale ainda mencionar as políticas e programas que pertencem ao novo mundo digital, cujas aplicações são transversais a todas as atividades industriais e tendem a ocupar todo o universo dos temas relativos à saúde. (Texto elaborado a partir de apresentação na Reunião Temática sobre a Estratégia para o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, preparatória da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação).

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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