Nos anos 40, quando Estados Unidos e União Soviética eram aliados contra o Eixo, se fazia referência ao líder soviético, de nome Joseph, como Uncle Joe, um apelido carinhoso que logo se dissipou na Guerra Fria. Se as previsões se confirmarem, um outro Joseph ocupará a Casa Branca a partir de 2021.

Com este resultado, além das mudanças na política interna, o que este Uncle Joe pode ter de impacto nas relações dos Estados Unidos com a América Latina? É possível pensar em alguns cenários do impacto que terá para o mundo e nosso continente.

Um primeiro aspecto, que por si só deve ser comemorado como relevante, é o retorno a uma política externa profissional e com um grau maior de previsibilidade. Um dos elementos mais chamativos da política externa do governo Trump foi a desvalorização do Departamento de Estado, que sofreu redução de orçamento, humilhação de quadros profissionais e trocas do Secretário de Estado quando não seguiam à risca a orientação do chefe.

Isto significa também uma provável revalorização do multilateralismo, com a valorização das organizações internacionais como espaço de negociação, o que pode favorecer não apenas a ONU, OMC e OMS como também a OEA.

Nos debates com Trump já foi exposta a preocupação com o meio ambiente, com um retorno dos EUA ao Acordo de Paris e uma pressão pela preservação da região amazônica, em que o Brasil, embora não seja o único, deve ser um dos alvos preferenciais.

Mas não se deve ter ilusões com a eleição de um presidente Democrata. Se por um lado o partido tem sido identificado nos últimos 50 anos com a defesa de minorias, o combate à discriminação e a promoção de novos direitos, é preciso lembrar que o mesmo Lyndon Johnson que promoveu leis de direitos civis e de direito de voto que responderam ao Movimento de Direitos Civis, liderado entre outros por Martin Luther King, também ampliou a presença militar norte-americana no Vietnã e apoiou intervenções militares para a derrubada de presidentes democraticamente eleitos em países como Brasil e República Dominicana.

O discurso a favor de direitos é direcionado ao eleitorado interno. A preservação de direitos de outros povos está subordinada aos interesses geopolíticos. Conta a história apócrifa que ao ser questionado sobre o apoio a um ditador na América Central por um assessor, que disse que o tal indivíduo seria um “FDP”, F.D. Roosevelt teria respondido: Sim, mas é o nosso Fdp. Pode não ser verdade, mas é compatível com a história. Jimmy Carter defendeu uma plataforma de defesa dos direitos humanos, mas manteve as relações com as ditaduras sanguinárias do Chile e da Argentina sem nem ao menos fazer o mesmo tipo de pressão dirigida a governos como o de Cuba.

Outros resultados positivos para o continente, no entanto, podem ser sentidos mesmo antes da posse do novo presidente e não dependem, em certa medida, das políticas que vai propor. A derrota de um proto-ditador histriônico, cujas características mais marcantes são racismo, machismo e irracionalidade envia um sinal simbólico às populações e líderes políticos dos diferentes países que viam neste modelo uma garantia de sucesso. Bolsonaro já não poderá jactar-se de sua amizade nem terá motivos para fazer juras de amor ao presidente de outro país. Os desejos recentes manifestados pelo chanceler Ernesto Araújo de que o Brasil se torne um pária no cenário internacional estarão mais próximos de se tornar realidade, pois novas declarações internacionais contra os direitos das mulheres estarão restritas a países irrelevantes na política internacional.

Por outro lado, se a possibilidade de uma tentativa de intervenção militar na Venezuela retorna aos roteiros de filmes de Hollywood, Maduro será privado de seu malvado favorito, sendo mais difícil apresentá-lo como personalidade demoníaca a um político apoiado por Bernie Sanders.

A normalização de relações diminuirá o apelo da política externa como elemento de união de grupos políticos nos países do continente. Com um governo moderado os EUA não podem ser apresentados nem como Santo nem como Satã. Será preciso resolver os problemas internos sem ter um inimigo em quem pôr a culpa, ou um modelo no qual justificar os próprios desvarios.

Do ponto de vista econômico, é possível que os prejuízos sejam maiores que as vantagens. Se por um lado deve cessar a imposição de tarifas sobre exportações surgidas do nada e a OMC deve voltar a ser o espaço de resolução de conflitos, a redução ou fim das guerras comerciais, em especial com a China pode normalizar o fluxo comercial deste país com os EUA, reduzindo as importações de commodities de outros países do continente que haviam encontrado nesta disputa uma janela de oportunidade para colocar seus produtos. A soja brasileira pode ser uma das afetadas.

Por outro lado, um governo democrata, ainda que tenha uma postura mais institucional nas negociações, não será necessariamente menos protecionista que um republicano. Retornar às práticas de uma década atrás não garante nenhum avanço imediato.

Para o futuro imediato, a substituição de um negacionista que se recusava a usar máscaras e chegou a falar em tomar alvejante como medicamento por um defensor da ciência e da prudência é uma boa notícia no combate à pandemia que vivemos e com a qual conviveremos por um bom período. Aumenta a probabilidade de colaboração pela produção e distribuição de vacinas como um bem público, sem a exigência absoluta de “América First”. Esta posição sendo assumida pelo país mais atingido pela Covid-19 em termos absolutos no continente esvaziará os discursos milenaristas por parte de outros líderes.

Falando em cenários, é possível pensar que tudo pode dar errado e dentro de alguns dias se decretará MAGA (Make America Great Again) por mais quatro anos. Neste caso, teremos mais do mesmo por alguns anos. Para não entrar em depressão, é preciso fazer um brinde à sabedoria do Congresso Estadunidense quando aprovou a Vigésima Segunda emenda em 1951.

Sobre as eleições americanas ver o artigo de Celso Amorim, publicado no Terapia Política e de Cristina S. Pecequilo.