A última entrevista do conhecido sociólogo Zygmunt Bauman, em 2017, foi sobre a utopia. Partiu da metáfora da era pré-moderna, a do caçador que defende os terrenos de sua ação acima de tudo. A segunda metáfora, já na era moderna, é a do jardineiro que conhece as plantas, os inços que devem ser extirpados e tem em sua mente o projeto de um jardim. Os produtores de utopias são conhecidos como jardineiros, os humanistas, já os que só visam lucros e atacam a natureza são os caçadores. Não se faz poesia, não se pensa utopia, sem metáforas e metamorfoses, como se pode ler no livro “Furos no futuro: psicanálise e utopia”, do psicanalista amigo Edson Luiz André de Sousa. Um cético aqui poderia ler com descaso a palavra utopia, mas Edson alerta citando Cioran: “…uma sociedade incapaz de gerar uma utopia e consagrar-se a ela está ameaçada de esclerose e de ruína”.
O problema da utopia está, em parte, nos dicionários que associam a palavra a uma sociedade do futuro, um caminho a chegar, um sonho realizável e não um caminho incerto a percorrer. Não por acaso, o escritor José Saramago escreveu que desejou eliminar a palavra utopia, pois associou ela a uma sociedade perfeita. Utopia é um significante com muitos significados e tem a ver não só com o futuro, mas também com o passado. Uma das primeiras lições que aprendi com o Edson foi sobre um novo sentido do vetor para pensar a utopia como indo do futuro para o passado. A utopia como crítica social, como contrafluxo, o passado em constante reconstrução através de novas narrativas.
Há uns vinte anos, Edson decidiu construir pontes entre a psicanálise a arte e a utopia. No primeiro capítulo do seu novo livro escreve que o inconsciente é uma espécie de fonte utópica e como a linguagem abre para os caminhos rebeldes, reinvenção da vida. Todo ato de criação traz em si uma dimensão utópica, e assim os três temas – arte, utopia e psicanálise – vão se interligando. Edson é um engenheiro de pontes imaginárias, para pensar a pessoa na sua singularidade, assim como reflete sobre a sociedade na qual vivemos. No livro “Múltiplo interesse da psicanálise”, de 1913, Freud estabeleceu diferentes relações entre a nova ciência e a linguagem, a filosofia, a biologia, a psicologia, a cultura, a arte, a sociologia, a pedagogia. Agora o livro do Edson acrescenta a utopia.
A metáfora do jardineiro teve sua origem não só na modernidade, como disse Bauman, mas no velho Tanach, também conhecido como Velho Testamento da Bíblia. O profeta Isaías escreveu em 2,4: “das suas espadas forjarão relhas dos arados, e das suas lanças, foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem daí por diante se adestrarão para a guerra”. Foi o primeiro sonhador pacifista da humanidade e, não por acaso, na tradição judaica, se define que: “a pátria do judeu é a utopia”. O ideal messiânico é um sonho milenar, um sonho dos profetas que chegou a Hilel, o sábio dos sábios, e daí a Jesus Cristo.
A existência da utopia requer uma confiança no potencial humano à altura da tarefa de melhorar o mundo. Uma reforma ameaçada pela destruição por furos que podem ser de tiros, como os que mataram o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips. Cada pessoa decide se está com os caçadores e a destruição ou com os jardineiros, e a utopia, ou ainda se é indiferente. Diante da crueldade das distopias, o livro “Furos no futuro” abre espaço para uma ética do desejo que possa responsabilizar cada um por suas escolhas, como se pode ler no instigante capítulo “O que o poder não pode? O inconsciente utópico”. Li e reli o livro da utopia e a psicanálise, e na releitura estive mais atento aos encontros do poder do inconsciente, o poder da poesia e o poder da utopia.
Na última entrevista de Jean-Paul Sartre, foi perguntado a ele se ainda tinha esperança; ele respondeu que sim, mas acrescentou que a esperança devia ser construída. Algo semelhante se pode dizer sobre o destino da humanidade, da utopia, que seguirá sendo construída, mesmo com dificuldades, pelos laços de amor. (Publicado no Facebook em 29/07/2022)
P.S. Fiquei sabendo pelo Edson que seu livro “Furos no Futuro” segue vendendo muito bem e assim também o nosso “Imaginar o amanhã”. Muito Obrigado Gente Querida.
Nos veremos dia dois de outubro ou antes ou depois. Nossas reuniões para conversar sobre os livros irão ocorrer em presença entre a primavera e o verão nas instituições, nas praças e no Jardim Botânico. Imaginemos, façamos furos no amanhã sim!
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
Clique aqui para ler artigos do autor.