Janete foi pega de surpresa pelo temporal enquanto caminhava para casa. Seu dia de trabalho foi duro, como todos os outros. Oito horas afiando facas, cortando carnes e ouvindo um ou outro desaforo de clientes no açougue de um supermercado. Chegou encharcada, cansada, suja, com fome e mal humorada. Ainda do portão, percebeu que tinha deixado a janela da sala aberta. Molhou o tapete. No quarto, descobriu uma goteira bem em cima da sua cama.

Queria só comer alguma coisa, tomar banho e dormir. Mas agora, teria que enxugar a sala, empurrar a cama e dar um jeito no colchão molhado. Talvez, dormir mal no sofá. Ou encher a cama de toalhas. “Não poderia ser pior”, pensou. Sentou-se na poltrona para se acalmar e pensar melhor no que fazer. Respirou fundo e encarou seu papagaio, sua única companhia em casa. Única companhia de sua vida. Olhou como quem lança a um amigo um olhar de desabafo à espera de solidariedade.

– Vagabunda! – disse o papagaio.

Janete tomou um susto. “Como assim, vagabunda?”. Chegou a pensar que não poderia ter sido seu papagaio. Ou que tivesse entendido errado. Por causa do barulho da chuva, talvez. Como se conseguisse ler os pensamentos de Janete, o papagaio repetiu.

– Vagabunda!

Falou com clareza. Quase soletrou. Não havia dúvidas, foi ele mesmo, era aquilo mesmo, vagabunda… Mas onde ele aprendeu aquilo? Há tempos Janete tenta ensinar seu papagaio a cantarolar, falar algumas palavras e frases. Fala, repete, insiste. Quase sempre, fracassa. Até hoje, o repertório do loro se resumia a: bom dia, au au au, eu sou um papagaio. E agora, vagabunda.

Mais perturbador que como, era o porquê. Janete trabalhava muito. Sempre trabalhou. Era honesta, honestíssima até! Na vida pessoal, sempre se resguardou. Mesmo nos tempos em que tinha o viço da juventude, era recatada. Ainda mais agora que o tempo e o trabalho duro lhe levaram os encantos. Não importa em qual sentido, se tem uma ofensa que não lhe cabe é essa. Vagabunda, não. Não combina. Não é com ela. Mas seu papagaio insiste em repetir, olha fixo no olhar de Janete:

– Vagabunda…

Subiu-lhe à mente e aos olhos a tristeza dos injustiçados. “O que esse papagaio está pensando de mim?”, perguntou-se Janete, como se o papagaio fosse gente, com pensamento e moral dessa gente que ofende pobre porque deles tem nojo. Que reafirma a vaidosa soberba pisoteando, humilhando, ofendendo, entristecendo gente pobre que aguenta humilhação calada porque não tem escolha, nem poder, nem nada.

Lembrou do seu dia de trabalho. Daquele último, mas poderia ser qualquer outro porque são todos iguais. Teve o gerente que lhe apalpou a bunda e mandou se apressar. O cliente impaciente que dizia alto que esse pessoal não gosta de trabalhar. As câmeras e a segurança do lugar que a vigiam até no vestiário, supondo que sem o olhar vigilante ela levaria para casa um naco de chuleta.

Não é que todos eles, cada um à sua maneira, sem dizer a palavra, a chamam de vagabunda? A tratam como vagabunda? Não importa o que faça. Não importa a pessoa que seja. Não importam seus pensamentos e sentimentos. Para todos eles, ela é vagabunda.

E, agora, para seu papagaio também. “Pelo menos, ele não disfarça”, consolou-se. O que Janete não sabia era que seu papagaio realmente tinha uma inteligência rara, talvez única para sua espécie. Sabia bem o significado do que dizia. O que lhe faltava era vocabulário para expressar seu compadecimento para com Janete, que amava e que no amor sentido, dizia lamentar sua vida vagabunda.

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Ilustração: Mihai Cauli 
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