Nos primeiros dias de maio de 2024, nosso estado vive a maior tragédia da sua história. De diferentes formas se pode imaginar que os gaúchos estão chocados, tristonhos. Penso nos que morreram e nos familiares e amigos que, de um momento para outro, perderam seus entes queridos. Penso nas milhares e milhares de casas destruídas, onde décadas de trabalho desapareceram.

Ontem vi na TV uma das cenas mais impactantes desses dias: um homem mostrava o interior de uma casa de madeira e o repórter iluminava enquanto o morador explicava. Mesa revirada, camas cheias de barro, a máquina de lavar roupa embarrada, aliás o barro estava por toda a parte, até no sótão. Dizia o morador, a cada coisa que mostrava: Deus do céu! Repetiu muitas vezes, e até disse estar se repetindo, mas estava chocado. Fiquei tempo assistindo uma casa por dentro toda destruída, pois o barro quase fez a casa sumir. Olhava e por dentro senti tristeza, e o morador seguiu mostrando raízes de aipim arrancadas, árvores frutíferas destruídas, potes de mel para vender estragados. E repetia: Deus do céu!

Há dezenas de mortos, talvez possa passar dos duzentos, pois ainda há muita gente desaparecida. Há muitas escolas e hospitais danificados. Nosso estado está traumatizado, estamos abatidos. Entretanto, há uma quantidade de voluntários ajudando a população – e que estão fazendo um trabalho admirável. Gente simples que perdeu casas, roupas, camas, tudo o que tinham.

Acompanho de perto o que fazem esses bravos voluntários através de um neto e uma neta que desde sábado estão trabalhando na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Danças da UFRGS. Narram todos os dias as mais variadas estórias: uma menina de uns quatro, cinco anos estava com a roupa do corpo molhada e o neto e ela foram buscando uma que ela gostasse. Nada servia, a menina estava tristonha, até que uma roupa fez seus olhos brilharem. A menina riu e o voluntário ajudou-a a se vestir e foi uma festa, pois no meio da tristeza, nasceu a alegria. Já a outra neta estava com uma mãe e sua filha com menos de um ano que não caminhava. A menina estendeu a mãozinha para a voluntária, que a ajudou com ambas mãos e começaram a caminhar. A mãe disse que era a primeira vez que caminhava e aí todo grupo bateu palmas.

Há também um sem número de cenas incríveis no estado, como o cordão de voluntários em Canoas para puxar as embarcações com desabrigados; o engenheiro que segurou um galho durante 15 horas em cima de seu carro e foi salvo por quatro amigos. Foram essenciais os helicópteros com seus pilotos retirando centenas de pessoas dos telhados.

Rio Grande traumatizado, mas o que é mesmo um trauma? Trauma é uma palavra usada em medicina e cirurgia, em grego é ferida e deriva da palavra furar. Já traumatismo são as consequências no organismo de lesões decorrentes de uma violência externa.

Em psicanálise se construiu a expressão: trauma psíquico (trauma na alma): choque violento, situação abrupta, com diferentes consequências em cada pessoa. Se bem que o trauma psíquico seja singular, pode ser pensado como trauma familiar, trauma de um estado, de um país. O trauma psíquico revela de forma simultânea, tanto um perigo externo de onde vem o ataque, como um perigo interno, pois o EU é atacado não só de fora, mas também de dentro. Ataques derivados das excitações pulsionais, pois cada um reage de acordo com sua realidade psíquica. O ano de 2024 nunca será esquecido, é um ano traumático.

No nosso Rio Grande, estão predominando as ações positivas por parte dos estudantes e jovens em geral, são os voluntários. Muitos dos que recebem ajuda vêm chamando os voluntários de anjos e, na verdade, são mesmo anjos, é gente que faz o papel de anjo protetor. Já nas redes sociais, além de se destacar esse Rio Grande heroico, há muitas críticas aos poderes silenciosos. Nem sempre as redes sociais expressam a verdade, quem sabe ocorrem coisas que não estão sendo divulgadas.

Uma coisa é certa: vai ser necessário muito tempo para se arrumarem as estradas, construírem as pontes, casas, escolas e as instituições sociais. Creio que foi um erro no passado quando parte da mídia propagou que o estado teria que ser mínimo. Reduziram o estado e prejudicaram o povo, pois diante da tragédia se requer um estado mais ágil, que trabalhe seriamente na prevenção. Diante das chuvaradas, das enchentes, o que veio fazendo o poder público nesses anos todos? Infelizmente desprezaram a importância do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade do RGS, aliás só há dias escutei sobre o IPH, e você sabia que existia? Precisamos aprender também a solidariedade com a nova geração, os Voluntários do Rio Grande. (Publicado na ZH, 11/05/2024)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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