Santiago Abascal em foto de Paco Puentes / El País

Quando me mudei para Barcelona em março de 2018, ansioso para tomar pé da realidade espanhola, a figura de Santiago Abascal chamava a atenção mais pela semelhança física com Chuck Norris do que pela relevância política. A face sempre tensa, a barba cerrada e espessa, o porte rígido de um militar, o traje muito justo, grudado ao corpo, e um indefectível casaco de couro. Na melhor versão, lembraria o rei Leônidas de Esparta, encarnado por Gerard Butler no filme “300”.

O Vox, partido que criou e lidera, não tinha representantes em qualquer das instituições da Espanha e não teve mais do que 50 mil votos no pleito geral de 2016. Nas eleições de abril de 2019, com 2,5 milhões de votos (10.3% do total), a agremiação de Abascal ingressou no parlamento com 24 deputados e se tornou a quinta maior força política do país. Cerca de seis meses depois, em 10 de novembro de 2019, mais que dobrou a representação, saltando para 52 deputados, abaixo apenas de PSOE e PP (os dois partidos que desde o fim do franquismo se revezam no poder).

Militante do PP durante 19 anos, sociólogo nascido em Bilbao, a capital do País Basco, Santiago Abascal (43 anos) se veste ainda com ternos tão justos quanto uma armadura de combate, mas abandonou o casaco de couro a la Chuck Norris. Agora usa ternos sociais como os demais. Está mais elegante e palatável. O rosto eventualmente distensionado até sorri.

Diferente de quase todos os outros países da zona do Euro, a Espanha não tinha até então nenhuma representação política que se pudesse chamar de ultradireita ou ultranacionalista – a extrema direita europeia abarca um arco de definição cada vez mais amplo, mas aparentemente, tem um ponto em comum, o apelo a uma suposta identidade nacional, ao patriotismo e à xenofobia.

O espantoso crescimento do Vox não foi porém, o único abalo na política espanhola nos últimos dois anos e meio. Em outubro de 2017, explodiu a crise da Catalunha. O governo e o parlamento da Comunidade Autônoma – são 17 as Comunidades que configuram o Estado espanhol -, controlados pelos independentistas, aprovaram e realizaram um plebiscito – declarado ilegal pelo então governo de Mariano Rajoy do Partido Popular-, que pretendia aprovar a independência e separação da Catalunha do resto da Espanha. Apoiando-se na Constituição de 1978, o governo Rajoy judicializou o conflito, interviu e destituiu o governo da Comunidade levando à prisão as principais lideranças pró-independência, como o então presidente da Catalunha, Carles Puigdemont, fundador e líder do Junts per Catalunya, que preferiu fugir e se exilar em Waterloo na Bélgica.

A crise da Catalunha teve pelo menos duas consequências indiretas: a primeira foi decretar o fim do governo de Mariano Rajoy. A intransigência e a judicialização do conflito que tomou dimensões incontroláveis não ajudou nada um governo cada vez mais caracterizado como “o mais corrupto da história da Espanha”. Em junho de 2018, uma moção de censura apresentada pelo PSOE foi aprovada pelo parlamento e Pedro Sanchez passou a ser o presidente em exercício.

A segunda consequência foi ajudar a acirrar o ânimo político do país. Ninguém se aproveitou melhor dessa situação que os liderados de Abascal. Curiosamente, o que se viu foi o enfrentamento de dois nacionalismos. A plataforma central do Vox era a defesa da unidade do Estado espanhol, cujos fundamentos, segundo eles, estavam sendo atacados pelos esquerdistas do PSOE, em conluio com comunistas e independentistas – um balaio de gatos, que vai de grupos conservadores, como o de Puigdemont, à CUP, de extrema esquerda. É quase inacreditável, mas até na rebelada Catalunha o partido cresceu, dobrando o número de votos da eleição de abril para a de novembro, e elegeu dois deputados. O Vox, que estreou com mais força na chamada Espanha rural (Andaluzia), atraindo a atenção e o voto dos pequenos agricultores, agora tem representação em quase todas as Comunidades Autônomas – nenhum partido tem, sequer o PSOE.

De onde migraram os votos para o Vox? Quem ele sangrou? Aparentemente, cresceu mais ou menos uniformemente em toda a Espanha. De todo modo, entre abril e novembro de 2019, outro fato político eleitoral ganhou a atenção dos espanhóis: a quase que liquidação do partido que foi criado com a intenção de ocupar o centro e que ao sair da eleição de abril com 57 deputados (tinha 32) anunciou seu assalto ao poder como próxima meta. Seis meses depois, o partido de Albert Rivera, Ciudadanos, tinha perdido 47 deputados, elegendo apenas 10. É provável que boa parte desse eleitorado tenha migrado para a ultradireita.

O que então constitui esse eleitorado de centro aqui na Espanha? Talvez se possa dizer que seja o amorfo por excelência, os dispostos a qualquer conveniência, os que acompanham as brisas e enlouquecem na ventania. O fato é que a biruta de Rivera e seus concidadãos simplesmente enlouqueceram e tão logo foram anunciados os resultados, o presidente do Ciudadanos renunciou ao cargo, abandonando o mandato e anunciando sua retirada da vida pública. Será que o mesmo pode acontecer daqui a pouco com o partido de Abascal?

Duas semanas atrás, o país ainda sob estado de alarme, e dando os primeiros passos para sair do rígido controle para vencer a pandemia, militantes e partidários foram convocados pelas lideranças do Vox para ocuparem as ruas em protesto contra o governo. As principais avenidas, principalmente de Madri, mas também de outras cidades foram ocupadas por carreatas patrióticas, gente e carros cobertos pela bandeira da Espanha, gritos raivosos contra Sanches e seus aliados comunistas. O esforço de atiçar rancores e descontentamentos guardados permanece como uma das marcas registradas do partido – como, de resto, dos agrupamentos de ultradireita ou ultranacionalista em geral. Após mais de dois meses de confinamento, é certo que havia muita gente enfurecida e disposta a inventar culpados para descarregar eventuais frustrações. Antevendo a oportunidade, lá estava o Vox, pronto a tomar a ofensiva.

Por qualquer razão, logo em seguida, Abascal parece ter preferido atenuar o ataque. Houve comentarista alertando que a política agressiva de se manter o tempo inteiro com os dentes crispados talvez soe arrogância e os eleitores, recém-conquistados ao centro, poderiam debandar, como estão registrando as pesquisas recentes como uma tendência. Difícil saber, pelo menos por hora. O fato é que o surgimento de um partido como o Vox, disposto a entoar hinos ultrapatrióticos, integra a Espanha um pouquinho mais ao quadro político que tem marcado o resto da Europa.