Em cinco de julho, os mercados admitiram que cometeram um erro. Apesar de apostar por meses que a guerra na Ucrânia produziria uma escassez global de trigo, os especuladores agora acreditam que as hostilidades não terão impacto significativo na oferta. É por isso que as notícias de que a Rússia permitirá que as exportações de trigo da Ucrânia no Mar Negro sejam retomadas mal foram registradas. No momento em que os beligerantes chegaram a esse acordo em 21 de julho, os preços já haviam sido “corrigidos” drasticamente para os níveis anteriores à guerra. Então, em 4 de agosto, os preços do petróleo também caíram abaixo do preço de antes da guerra, marcando uma segunda admissão do mercado. No momento, tanto o petróleo flui nas veias da economia global quanto antes do início da guerra.
A guerra do Kremlin não criou um pesadelo malthusiano de pouca comida e combustível para muitas pessoas. Mas especuladores financeiros em Wall Street e Londres apostaram que sim, fazendo com que os preços globais disparassem – e agora despenquem. Essa especulação levou a meses de preços de dar água na boca, baseados em fundamentos não econômicos, mas apenas intuitivos.
O aumento dos preços dos alimentos e dos combustíveis levou 71 milhões das pessoas mais vulneráveis do mundo à pobreza extrema. Os altos preços provocaram protestos na Argentina, Chile, Chipre, Grécia, Guiné, Gana, Equador, Indonésia, Irã, Quênia, Líbano, Palestina, Peru, Sudão e Tunísia. No Sri Lanka, os preços provocaram protestos que derrubaram o Primeiro Ministro e criaram uma piora na dívida, crise que na semana passada resultou na deposição do Presidente. A inflação impulsionada pelas commodities também atingiu os Estados Unidos, abalou os índices de aprovação de Joe Biden e, apesar da queda dos preços do gás, pode já ter condenado os democratas a derrotas humilhantes nas próximas eleições.
Por que os mercados entenderam tão errado? Como o prêmio Nobel Robert Shiller mostrou, por trás de cada movimento de preço há uma narrativa. Nas semanas que se seguiram ao início da guerra, as manchetes emitiram terríveis advertências sobre o que poderia ocorrer com as sanções à Rússia, como o embargo ao petróleo, com o trigo encalhado apodrecendo em silos, o bloqueio aos portos russos e no Mar Negro. A pergunta a ser respondida, no entanto, é a seguinte: Esses “fatos” justificam a elevação exorbitante dos preços que se seguiram?
O veredito, baseado na correção mais recente do mercado, é um firme “não”.
Esta não é apenas uma questão retórica. Por um lado, mesmo os embargos de petróleo com amplo apoio internacional não conseguem impedir que os barris cruzem as fronteiras, muito menos o esforço desigual e cheio de brechas dos Estados Unidos e da Europa para limitar as exportações russas. Os avisos de uma crise alimentar global que se aproximava pressupunham que as exportações de trigo da Rússia e da Ucrânia – 25% do total global – ficariam retidas para sempre. Mas os comerciantes de commodities físicas são notavelmente resilientes na superação de barreiras – sejam zonas de guerra, tarifas, a Drug Enforcement Administration ou piratas.
Tanto russos quanto ucranianos lucrariam muito com o fornecimento de grãos em silos para os mercados globais, uma vez que os preços no início do ano já estavam elevados. Não é surpresa que eles realmente tenham encontrado maneiras de fazer isso: revivendo rotas fluviais, usando portos romenos e contrabandeando grãos. Mesmo assim, cabe registrar que suas exportações de grãos pelo Mar Negro representam apenas 0,9% da produção global de trigo, e os estoques de grãos já estavam aumentando em todo o mundo em março, devido a expansão da produção em 2021.
Mas essas histórias de resiliência foram esmagadas pela avalanche de histórias de crise. E, como acontece com todas as bolhas especulativas, uma vez que o dinheiro entrou e elevou os preços, os preços mais altos “confirmaram” a história inicial e provocaram uma nova elevação nos preços. A profecia auto-realizável até foi exibida nos quadros de mensagens do Reddit, onde, assim como na bolha da GameStop de 2021, os pôsteres exageraram os preços.
Os fundos negociados em bolsa de commodities receberam US$ 4,5 bilhões em uma única semana, enquanto os investidores de varejo investiram suas economias no enriquecimento rápido. Os investidores institucionais também despejaram dinheiro nos mercados de commodities, não por causa de qualquer crença sobre oferta e demanda fundamental, mas para diversificar seus portfólios com um “hedge de inflação”. Logo as commodities ultrapassaram os recordes de 2008, e o secretário-geral das Nações Unidas alertou para mais uma “crise global da fome”.
Em junho, a narrativa começou a mudar. As imagens de ruínas fumegantes de cidades ucranianas bombardeadas não lideravam mais o noticiário noturno. Em vez disso, histórias de inflação, aumento das taxas de juros e uma recessão global que se aproximava subiram. O sentimento virou. Os comerciantes substituíram seus temores de uma escassez de trigo e petróleo pelo temor de uma queda na demanda. O Citigroup previu que o petróleo bruto estava a caminho de US$ 65 o barril até o final do ano e US$ 45 até o final de 2023. Os especuladores reverteram suas apostas. Os preços caíram.
Esta não é a primeira vez que os mercados prevêem uma crise alimentar que nunca aconteceu, mas mesmo assim elevou os preços.
A “crise alimentar global” de 2008, quando os altos preços levaram 155 milhões de pessoas à pobreza extrema e desencadearam tumultos em 48 países, não foi motivada por fundamentos, mas por especulação excessiva, segundo o relator especial da ONU sobre o direito à alimentação e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD); até o Goldman Sachs admitiu que “sem dúvida, o aumento do fluxo de fundos para commodities impulsionou os preços”. Outro ataque especulativo em 2010, devido a temores de inflação impulsionada pela Federal Reserve’s policy of Quantitative Easing e pelos incêndios florestais russos, desencadeou os protestos da Primavera Árabe. Tanto em 2008 quanto em 2010, o sistema alimentar global produziu mais alimentos do que em qualquer outro momento da história.
Historicamente, o aumento dos preços em tempos de abundância é incomum. Quando Maria Antonieta supostamente brincou “Se não têm pão, que comam brioches”, depois de ouvir que os cidadãos franceses não podiam comprar pão, pois havia uma escassez genuína de trigo. Além disso, choques geopolíticos nem sempre se traduzem necessariamente em choques de preços. De 1984 a 2004, os preços das commodities desfrutaram de notável estabilidade, apesar do colapso da União Soviética, da ascensão dos Tigres Asiáticos e das duas guerras no Iraque. De fato, quando George W. Bush invadiu o Iraque em março de 2003, os preços do petróleo caíram.
A desconexão entre percepção e realidade se tornou visível em 2006, quando os preços dos alimentos começaram a subir apesar do aumento da oferta global. Empolgados com os mercados emergentes em expansão, os investidores financeiros tiraram vantagem do Commodity Futures Modernization Act (2000), que removeu os regulamentos da era Franklin D. Roosevelt que restringiam a especulação externa. Os mercados sóbrios das décadas de 1980 e 1990 eram dominados pelos comerciantes físicos de commodities, fossem agricultores, processadores de alimentos, refinarias de petróleo ou companhias aéreas, que apostavam baseados em seus conhecimentos de primeira mão, não nas manchetes jornalísticas.
Mas em 2008, eles já eram uma minoria. Em vez disso, os especuladores financeiros, cuja grande maioria não viu nem alqueires de terra, nem barris de nada, exerceram uma tremenda influência na formação de preços. Desde então, as commodities sofreram ciclos desastrosos de alta e baixa, cada um desencadeando uma onda de destruição em todo o mundo.
Em 2022, nem os Estados Unidos conseguiram escapar do caos. O governo Biden se rendeu à história da crise de que os altos preços das commodities eram um resultado lógico de guerra e sanções. Os preços em colapso em meio à luta contínua expuseram isso como um mito. A fonte do caos não está “lá” em Donbass, mas “aqui” no Ocidente. Sem dúvida, Vladimir Putin começou esta guerra por sua própria vontade. Mas foi Wall Street que transformou um conflito na Europa Oriental em uma crise global de alimentos e energia. Tanto as bolsas de mercadorias onde os futuros são negociados quanto o capital financeiro especulativo que flui para elas operam em solo norte-americano e estão sujeitos às regulamentações norte-americanas.
Biden sempre teve o poder de trazer ordem a esses mercados. Ele precisa colocar aqueles que fabricam, distribuem e vendem commodities físicas de volta ao controle dos preços, assim como Roosevelt fez quando enfrentou o caos especulativo nos mercados de commodities. Só desta forma podemos impedir que os medos do mercado transformem nossa realidade em pesadelo. (Uma versão desse artigo foi públicada em inglês na revista Jacobin em 11 de agosto de 2022)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Marlon S. Martins.
Sobre o conflito na Ucrânia, leia também O declínio do Ocidente por Paulo Nogueira Batista Jr.