Em Woodstock, o homem que fazia limpeza declara: “tenho um filho aqui e outro no Vietnã”.
“yes, I’m gonna try with a little help from my friends” (Joe Cocker/Lennon&MacCartney)

O festival de Woodstock completou 55 anos há poucos dias. Originalmente realizado na fazenda de Max Yasgur e adjacências (Bethel, NY) entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969, tornou-se um marco para diversas gerações. Foi o ápice, e o início do fim do movimento flower-power. Consagrou músicos, alguns ainda na ativa como Santana, The Who, Joan Baez e até Arlo Guthrie e outros, que hoje vivem na memória musical e tocam no rádio e nos streamings da vida como Janis Joplin e Jimi Hendrix. Para comemorar, nos reunimos para rever o filme realizado pelo diretor Michael Wadleigh, que tinha como assistentes de direção e edição os jovens Martin Scorsese e Thelma Schoonmaker. Interessante assinalar é que na comemoração, a maioria dos que assistiam, na faixa entre 25 e 35 anos, jamais tinham visto o filme ou escutado os discos (álbum triplo e depois mais um duplo. Tempos do vinil). Tinham ouvido falar e até mesmo frequentado outros festivais recentes tais como Coachela, Glastonbury ou aquele que reuniu no deserto da Califórnia Bob Dylan, Neil Young, Rolling Stones, The Who, Roger Waters e Paul McCartney. Sem falar em Águas Claras e Morrostock locais.

Os jovens ficaram impressionados com a quantidade de gente (no mínimo 400 mil pessoas) e com a calma que imperou naqueles dias, onde houve mais nascimentos do que mortes (duas e nenhuma delas por violência). Isto que Charles Manson ainda não tinha sido preso pelo assassinato brutal de Sharon Tate e seus amigos. Os Panteras Negras também compareceram, assim como budistas, famílias hippies com suas crianças, freiras e até o exército ajudando com transporte e alimentos. Não esqueçamos que os protestos contra a guerra do Vietnã cresciam intensamente e muita gente se exilava ou ia para a prisão, por se recusar ao recrutamento. Joan Baez fala disso em sua apresentação; pois seu marido estava sendo transferido de penitenciária naquele momento.

Cena emblemática de solidariedade: o homem que fazia limpeza e manutenção dos banheiros químicos declara: “tenho um filho aqui e outro no Vietnã. Decidi vir ajudar”. Alguns de nós revíamos pela enésima vez o documentário, outros estavam sendo apresentados às cenas, às imagens e sua edição premonitória pela primeira vez. Lembremo-nos do blues de Jimi Hendrix embalando as imagens desoladoras de como ficou o local. Foram necessários dias para recolher as toneladas de lixo. Para nós, expectadores, foi um momento de compartilhar experiências e transmitir algumas histórias que vivemos, ou que pudemos ter acesso graças ao cinema e à música. Sim, o filme e os discos escreveram, inscreveram aquele momento na história.

Isso nos remete a outro momento, onde retomamos um encontro que articula psicanálise e cinema; desta vez através do som e das imagens da Invenção de Hugo Cabretde Martin Scorsese. Uma homenagem ao cinema e sua história, à ficção e aos sonhos que nos impelem, ou melhor, possibilitam que decifremos mistérios, apesar de todas as agruras e obstáculos da vida que se impõem sem o nosso controle. Pandemias, enchentes arrasadoras, gestores incompetentes; nos últimos tempos, sabemos bem do que isto se trata. Junto com isso, algumas referências são fundamentais para que os traumas subjetivos possam ser superados.

No caso de Hugo, o desamparo com a morte do pai, antes dos 12 anos, numa Paris dos anos 30. Sua casa, esconderijo, uma estação de trens – a antiga estação de Montparnasse, microcosmo da cidade, onde ele se esforça para manter funcionando os relógios da Gare (estação). Afinal, este artesanato/ofício era herança paterna que ele preservava. Seu sonho: restaurar um autômato que o pai encontrara, abandonado no museu onde trabalhava. Noite após noite, dia após dia recuperando peças, polindo outras, consertando. Faltava uma chave, cuja entrada/fechadura em forma de coração ficava no peito do autômato. Qual não foi sua surpresa ao encontrar a chave adornando o pescoço de uma amiga, Isabelle, também órfã que não conhecia o cinema. Seus pais que mais pareciam seus avós, não deixavam; o tio Georges parecia não gostar. Hugo esperava alguma mensagem do pai quando pusesse o autômato em funcionamento. O protótipo não escreveu uma carta – desenhou uma cena de Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès. Lição importante: o leitor é quem deve decifrar o escrito, o desenho.

Tentar dizer algo a respeito, com o repertório de recursos que tem a seu dispor e, muitas vezes não sabe que tem. Afinal, o inconsciente é um saber que não se sabe. E a chave, interpretativa, não tem um sentido único. Como foi dito há muito tempo, não só pela psicanálise, o Eu não é senhor em sua própria casa. Ferida narcísica. Dependemos dos outros para nossa formação e caminhada ultrapassando obstáculos. Melhor, longe de ser um defeito, isto nos ajuda a enfrentar o impulso ao totalitarismo que nosso desamparo sempre corre o risco de convocar. E não faltam candidatos para ocupar o lugar. Ainda bem que Georges, que desistira do cinema, traumatizado pela primeira Grande Guerra, pôde retomar seu desejo através da persistência dos sonhos e fascínio de Hugo pelos filmes e suas maravilhas.

Martin Scorsese, o jovem assistente de direção de 69, agora um diretor consagrado, pode render homenagem a seus precursores e seus primeiros cenários. Reapropriação da herança. A Gare de Montparnasse, em 1895, foi cenário de um célebre acidente de trem (tão famoso que até virou fachada do Mundo a vapor, de Canela/RS). No mesmo ano, os irmãos Lumière exibiram a chegada de um trem na estação de Ciotat; primórdios do cinema. Não por acaso, em 1895, Freud e Breuer publicaram seus Estudos sobre a histeria. O tempo e a história seguem em movimento. (Publicado por Sul 21)

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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