“Diálogos” é uma obra de Platão que, além de filosófica, é uma beleza literária, e assim se diferencia de seu mestre Sócrates que não escreveu. Também os escritores criam diálogos, personagens, unem vivências reais e imaginam outras, recuperando assim o amor infantil de criar aventuras. Admiro as histórias sobre irmãos como a luta para sobreviver de Joãozinho e Mariazinha, amigos entre si, a diferença do desenlace da inveja de Caim por Abel. As relações fraternas não são fáceis, sempre marcadas pela rivalidade, competem pelo amor dos pais, e seus equivalentes simbólicos. O filhinho do papai, o filhinho da mamãe, o excluído, enfim, a luta pelo amor não costuma ser fácil.

Um exemplo de diálogo foi escrito por Guimarães Rosa, que usa com frequência as conversas na sua ficção, como na novela “Campo Geral”. Se sabe que Rosa é um escritor que requer tempo e paciência para se envolver com a sabedoria e beleza de suas frases. É o grande escritor da literatura brasileira. Na leitura de “Campo Geral” deparei com os irmãos Miguilim, oito anos, e Dito, seu irmão menor, que já li algumas vezes. Depois de ler a novela, busquei só os diálogos entre os dois irmãos, sempre juntos nas brincadeiras e na seriedade da vida.

Miguilim, míope, que tinha no irmão Dito o parceiro diário com quem estava sempre aprendendo. E foi Dito que um dia pisou num caco de vidro e cortou o pé. “Meu-Deus-do-céu”, disse Miguilim. O pé do Dito foi enfaixado e pulava num pé só, mas tinha dor nas costas e dor na cabeça, gemia, enchia a casa de sofrimento. Vovó Izidra fez tudo que sabia, até rezaram, a febre era muito quente, vomitava tudo, mas no outro dia começou a melhorar.

Entretanto, um dia Dito piorou, quase não podia mais falar, havia contraído tétano, e no meio do sertão mineiro não havia muito o que fazer. Uma hora Dito chamou Miguilim, queria ficar sozinho com ele. Quase que não podia mais falar. “Miguilim, você não contou a estória de Cuca Pingo-de-Ouro”. “Mas eu não posso, Dito, não posso! Eu gosto demais dela, estes dias todos…”. “Como é que podia inventar a estória?”, Miguilim soluçava. “Faz mal não, Miguilim, mesmo ceguinha ela há de me reconhecer…”. “No céu, Dito? No céu?!”. E Miguilim desengolia da garganta um desespero.

“Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com Mãe, é de você”. “Miguilim, Miguilim, vou ensinar o que agora eu sei demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, mesmo com toda coisa ruim acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro”. Miguilim chorava aos gritos, sufocava, os outros vieram, puxaram Miguilim de lá.

Dizem que Miguilim é parecido com o escritor Guimarães Rosa, pois ambos eram míopes, com vivências de sertão, tanto que há uma história muito bonita mais adiante, no livro “Campo Geral”, sobre a miopia de Miguilim. Ler sobre a amizade entre irmãos desperta um sentimento do quanto dependemos desses laços fraternos para viver bem. Talvez tenha lido tantas vezes para aprender e romper certo individualismo acentuado que se vive, dominado por uma passividade social.

É preciso conversar, dialogar, escrever sobre a vida, contar causos, revisitar os primeiros anos essenciais em todo ser humano, artista ou não. Imagino o quanto cada um teria para contar sobre as casas do passado, as cidades, os bairros, os inumeráveis jogos, as amizades, as escolas. Histórias alegres, tristes, de amor ou de ódio, brigas familiares ou com vizinhos, sucessos e fracassos, doenças, viagens. As redes sociais são um espaço, para se ler histórias emocionantes de uma avó, de uma segunda mãe, de algum pai, e até de irmãos amigos. A fraternidade deve crescer, pois a igualdade aqui está cada vez mais distante, e até a liberdade está ameaçada. Precisamos de alegria por dentro, como disse Dito para Miguilim, recuperar a alegria brasileira é o desafio.

Este texto foi publicado originalmente no Facebook do autor em 20 de maio de 2022.

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Ilustração: Mihai Cauli

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