A tradicional caderneta de poupança, que paga juros em torno de 6,17% ao ano, é a faca de dois gumes do Sistema Financeiro de Habitação (SNH), financiador do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV). Ao mesmo tempo que é um dinheiro “barato” aos bancos, permitindo crédito habitacional a juros baixos, a caderneta é também pouco atrativa para quem poupa.
Com a taxa básica de juros, a Selic, pagando ao poupador de títulos do Tesouro Nacional mais que o dobro disso — 15% —, quem é que continua depositando na poupança? Essa é a provocação feita pelos influencers financeiros. Poucas entradas e muitas saídas resultam no óbvio: um enxugamento do orçamento disponível.
O Minha Casa Minha Vida está para o trabalhador que quer teto, como o Crédito Rural está para o produtor rural. Ambos se beneficiam de obrigações impostas pelo governo aos bancos de direcionar dinheiro para políticas públicas específicas, seja a habitacional ou o incentivo às atividades agropecuárias. São as chamadas “exigibilidades”.
Assim como o SNH, que tem buscado outras fontes para financiar casas e apartamentos no país, uma mudança estrutural está em curso no financiamento agropecuário pelo Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR). Base de regras para o Plano Safra, que financia vários subprogramas, como o Pronaf da agricultura familiar, o Sistema de Crédito Rural passou muitos anos sendo financiado por mecanismos financeiros carimbados oficialmente pelo governo e, portanto, mais estáveis e baratos.
De uns tempos pra cá, a lógica se inverteu: sai governo, entra mercado.
Um instrumento financeiro gerido por bancos se tornou, em duas décadas de operação, o principal financiador do crédito rural no país. A participação da Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) no crédito rural chegou aos 43% em 2025, de acordo com os dados abertos do Banco Central do Brasil (BCB). A virada compromete a essência do bolo que financia do pequeno — em menor parcela — ao grande produtor, já que desvaloriza o crédito público e incentiva o lucro de bancos.
Criada em 2004, no primeiro governo Lula, a LCA passou de zero à maior fonte entre todos os tipos de recursos registrados pelo Banco Central. O financiamento do setor depende, majoritariamente, do potencial de venda das LCAs por bancos para seus clientes, uma relação estritamente mercadológica. Hoje, 50% da captação de LCA deve ser destinada ao crédito rural.
O banco vende esse crédito da forma como bem entende, a juros muito superiores aos de uma política pública incentivadora da atividade.
Na relação banco-correntista, que é imprescindível para essa captação, é bem comum receber uma ligação do gerente da conta recomendando aplicações em LCA. Também não é difícil que essa recomendação se concretize por alguns motivos.
Quem a oferece é o banco, instituição em que o investidor mais conservador confia. A LCA é também protegida pelo Fundo Garantidor de Crédito (FGC), isto é, se o banco quebrar, o investidor tem a segurança de receber o dinheiro de volta em até R$ 250 mil. E rende bem mais que a poupança: há LCAs pagando cerca de 90% do CDI, um índice muito próximo à Selic, que bateu o recorde dos últimos 20 anos, chegando aos 15%.
Em apenas cinco anos, entre 2020 e 2025, o volume de estoque de aplicações em LCAs disparou quase 380%, saindo de R$ 117 bilhões para R$ 559,94 bilhões. “Você empresta o seu dinheiro para o banco e auxilia no desenvolvimento do setor agro brasileiro”, anuncia o Banco do Brasil nas ofertas de LCA. Bancos privados também são vitrine para a letra de crédito do agro.
Por muito tempo, a isenção do imposto de renda foi mais um chamariz para cidadãos colocarem dinheiro em LCAs. Uma medida provisória (MP) do governo Lula III pretende mudar isso a partir de janeiro de 2026, mas enfrenta grande resistência do Congresso Nacional, que não está em seu melhor momento de afinidade com o Planalto e onde um terço das cadeiras defende pautas do agronegócio. Caso a MP fosse aprovada, seria a primeira vez que uma taxação incidiria sobre o rendimento dessas letras.
Não só a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA) na Câmara e no Senado está bastante reativa à taxação de instrumentos do mercado privado, como também deseja aumentar a participação da LCA no crédito rural. Caso todos os desejos da frente do agro se realizem — veto da taxação e aumento do direcionamento dessa captação para o agro —, a já alta renúncia fiscal dessas letras seria ainda maior.
No curso geral do crédito rural, porém, mesmo que haja um recuo de aplicações, as LCAs são a base estrutural do crédito rural atual, o que levanta críticas entre quem pesquisa o financiamento agrícola.
“É uma financeirização ‘por dentro’ do sistema de crédito rural, que passa a se apoiar em uma fonte altamente instável, volátil e fortemente especulativa”, afirma Sergio Pereira Leite, doutor em Economia e professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), sobre a expressiva participação da LCA na composição do SNCR. (Para continuar lendo o artigo clique em O joio e o trigo, onde foi originalmente publicado)
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Ilustração: Mihai Cauli
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