Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique para América Latina.
Leia artigo publicado hoje “Ainda sobre as eleições na Argentina“, de Adhemar Mineiro.

O punhal: Javier Milei, primeiro nas PASO 

O triunfo do líder do La Libertad Avanza nas PASO (primárias da Argentina) revela mudanças sociais que só apenas começamos a entender. Uma sociedade fragmentada, atingida pela crise econômica e pela pandemia, que expressa sua raiva, mas também expressa o desejo, a necessidade de um reinício profundo.

Quem havia notado a nova classe burguesa antes que as cabeças de Luís XVI e Maria Antonieta fossem guilhotinadas? Ou os trabalhadores excluídos recém-chegados do interior antes de cruzarem as pontes, em 17 de outubro de 1945? As transformações sociais são lentas e se processam silenciosamente, são correntes subterrâneas que não são fáceis de intuir, até que um dia irrompem, e aí todos dizem: claro, é óbvio, tinha que acontecer.

Por isso, para começar a entender os resultados das PASO no domingo, acredito que, mais do que pensar em grandes mudanças ideológicas no eleitorado (“giro conservador”, “giro à direita”), devemos analisar o estado da sociedade em sua forma mais pura, no patamar mais básico possível. E não é preciso doutorado em sociologia para perceber que a sociedade argentina está estilhaçada, quebrada em mil pedaços depois de uma década de estagnação, de uma economia que não funciona, nem resolve, nem mostra saída de uma configuração política polarizada que já não serve a ninguém, de anos de pandemia e inflação.

Se não houve nessa época uma rebelião que varreu tudo com um só golpe fulminante, como ocorreu em 1989 e 2001, foi porque as políticas assistenciais cumprem um papel efetivo de contenção, porque os movimentos sociais canalizam o descontentamento e porque a democracia continua funcionando, como se a sociedade, que há dois anos já havia dado um sinal de alerta quebrando o recorde de abstenção, desta vez esperasse chegar o momento eleitoral enquanto afiava pacientemente a adaga, para finalmente mergulhá-la no corpo do sistema.

Desiludida mas não violenta, a sociedade argentina sente-se protagonista de um enorme fracasso coletivo, o que talvez explique por que valoriza tanto os poucos sucessos simbólicos que tem em mãos (a Copa do Mundo, o filme argentino “1985”, como a lembrança de algo que deu certo).

Não explode, mas explode por dentro todos os dias. Onde vemos? No aumento da violência intrafamiliar, na multiplicação de pequenos conflitos sem sentido que rapidamente terminam em brigas acirradas, no aumento do consumo de drogas e álcool e do abuso de psicotrópicos (a venda de clonazepam e alprazolam triplicou no primeiro caso, e cinco, no segundo, mais que a média das drogas no último ano).

As relações entre pessoas e instituições estão rompidas: o vínculo escolar de centenas de milhares de crianças foi interrompido pela pandemia e nunca mais recuperado; um relatório do Observatório de Psicologia Social Aplicada da Universidade de Buenos Aires registrou uma deterioração sem precedentes nas relações conjugais e um aumento dos conflitos familiares.

Não só a crise e a pandemia, a digitalização também está mudando a sociedade, principalmente as gerações mais jovens. Multiplicam-se os “empregos” nos serviços de entrega e aplicativos de transporte, os empregos comissionados (por exemplo, no telemarketing) e as oportunidades oferecidas pela economia de plataformas para a criação de pequenos empreendimentos.

As referências de sucesso desta nova etapa não são os líderes que constroem grandes organizações ou ações coletivas, mas sim os indivíduos: uma sociedade de ídolos soltos, milionários graças à especulação com criptomoedas, influenciadores que faturam pelo YouTube e trapaceiam e líderes do hip hop que não apostam mais no trabalho comum da banda (de cúmbia, de rock) mas no talento individual de um artista que só precisa de um telefone para triunfar. Trata-se, em todos os casos, de iniciativas individuais – no máximo familiares ou em grupos muito pequenos – sustentadas pelos ideais de liberdade, pequena propriedade, flexibilidade de horário, criatividade e empreendedorismo. O paradigma meritocrático de esforço individual, autoaperfeiçoamento e risco. Como se a “sociedade de risco” de Ulrich Beck tivesse sido internalizada em tom positivo: todos correm riscos (seu investimento, sua saúde, suas vidas pedalando por uma entrega) e olham com desconfiança para aqueles que consideram não fazê-lo.

Diante dessa nova realidade social, tanto o peronismo quanto essa sensibilidade difusa que chamamos de “progressismo” pouco têm a dizer e por isso falham. A ideia de que se ganha eleições aumentando as pensões ou elevando o piso do imposto de renda tem se mostrado falsa: há uma parte do drama que não se resolve com mais gastos, que não entra no Ingresso Familiar Emergencial – IFE, no valor fixo ou no plan platita.

O que o peronismo tem a oferecer a essas novas realidades? Seu clássico discurso protetor, sua visão do Estado como um equalizador social e seu apelo à ação coletiva por sindicatos ou movimentos sociais têm pouco a ver com a vida sofrida, atomizada e quebrada de mais e mais pessoas, para quem o liberalismo é menos uma ideologia do que uma realidade que emerge da posição que ocupam na economia; um efeito, como argumenta Pablo Seman, de seu lugar na estrutura do capitalismo. Se o discurso popular clássico do peronismo pode soar antiquado, o discurso progressista parece diretamente oco. Ou pior ainda: como desculpa para encobrir privilégios.

Por isso insisto: é preciso buscar uma explicação para os resultados das primárias, o golpe de Javier Milei, o triunfo de Patricia Bullrich na interna de Juntos por el Cambio e o terceiro lugar do peronismo, no nível do chão. É hora de sociólogos (ou antropólogos), em vez de cientistas políticos. Você tem que ir olhar lá, na feira de roupas usadas, no quiosque 24 horas, no grupinho que se reúne na esquina (“A cantina dos pobres”, como dizia o policial do The Wire). É por isso que, no final das contas, as respostas espontâneas dos trabalhadores que passaram pela estação Constitución e reagiram à banca Crónica foram mais precisas do que as mil pesquisas anteriores.

Era, de certa forma, lógico: a sociedade havia punido o Kirchnerismo (em 2015), o Macrismo (em 2019) e a Frente de Todos (em 2021), e desta vez buscava algo completamente novo, a marca mais rara em oferta na gôndola, o veículo mais bizarro para gritar a ferocidade de sua raiva, como se procurasse mais do que dizer algo: ser acreditado.

E, no entanto, não é apenas a rejeição surda que explica o crescimento de Milei. Se o macrismo era essencialmente uma coalizão antiperonista, Milei é isso, mas é mais do que isso. Existe um voto de esperança? Digamos que haja uma expectativa. Depois de uma década de impasse político, da esterilidade da “hegemonia impossível”, Milei diz, clara e ruidosamente, que pode, que as coisas que promete – dolarização, menos impostos – são viáveis. Ele os retomou em seu discurso na noite da eleição, que pode ter soado febril e distópico (o que foi), mas que também foi autêntico (Milei é autêntico), que procurou mostrar um programa e que foi o mais ideológico de todos, com referências aos heróis do liberalismo (Alberto Venegas Lynch, o próprio Alberdi) e uma série de propostas bastante específicas. A ascensão de Milei expressa uma vontade de desafiar fortemente o sistema e rejeitar o gradualismo, mas também o desejo de uma reinicialização profunda, de um choque.

Algo deve ser reconhecido no libertário. Houve inteligência estratégica por trás de sua vitória, conforme revelado por cinco decisões que ele conseguiu sustentar ao longo da campanha.

A primeira (decisão) é construir-se como candidato antipolítico apelando para o feito contra a “casta”, conceito importado do Podemos que ele soube explorar melhor do que ninguém.

A segunda (decisão), que deriva da anterior, é não aderir ao Juntos por el Cambio, como fizeram José Luis Espert e Ricardo López Murphy, cuidando para não atacar Macri ou Bullrich, e concentrando suas investidas em Horacio Rodríguez Larreta.

A terceira (decisão), que apareceu em seu discurso ontem, é a reivindicação de Menem e Cavallo como os arquitetos do último plano anti-inflacionário bem-sucedido, uma audaciosa operação simbólica que coloca Milei no grupo de líderes de extrema direita que mergulham no passado para encontrar seu lugar no presente: o Tea Party como antecedente de Donald Trump, o Vox e o Franquismo, José Antonio Kast e o Pinochetismo, Jair Bolsonaro e a ditadura brasileira.

A quarta (decisão) soma ao seu neoliberalismo econômico os votos da reação conservadora, a rejeição gerada pelos avanços em matérias de gênero, diversidade e pluralismo, em amplos setores sociais.

E a quinta (decisão), que começou nos últimos dois meses, quando deixou de falar em venda de órgãos para se concentrar em seus dois ou três hits (dolarização, crítica ao Estado, contestação política), é trabalhar na desdemonização de sua figura para tornar tolerável, ou pelo menos ouvido, para amplos setores da sociedade, o mesmo caminho que Marine Le Pen seguiu na época, distanciando-se do fascismo de seu pai; Georgia Meloni, enviando sinais tranquilizadores à União Europeia; e Jair Bolsonaro, buscando o apoio da centro-direita tradicional. Vamos concluir.

A vitória de Milei, que se espalhou por quase todo o país e por quase todos os estratos sociais, se completa com o triunfo de Bullrich nas internas do Juntos por el Cambio. Expressão da crise da centro-direita tradicional que já se manifestava em países como Brasil e Chile, Bullrich entendeu melhor que o seu rival para que lado soprava o vento, descartou as construções superestruturais (aquela exibição descarada de dirigentes que fez a campanha de Rodríguez Larreta) e ofereceu uma proposta clara: é a candidata ultra mas que joga dentro de um partido tradicional e é, portanto, mais confiável. Se Milei é Bolsonaro, Bullrich quer ser Trump.

O quadro termina com a derrota do peronismo, a pior de sua história. Como o eleitorado foi dividido em terços (ou quartos, se considerarmos o voto em branco e a abstenção), tudo pode acontecer. Por baixo da política existe uma sociedade muito diferente daquela construída pela crise de 2001, o kirchnerismo e o gradualismo de Macri, uma nova sociedade que estamos apenas começando a conhecer.  (Publicado no Ladiariamundo em 14/08/2023)
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli Tradução: Eduardo Scaletsky Revisão: Fernanda Novaes