
Revista O Malho de 1904, Protestos anti-vacina no Rio de Janeiro (Revolta da Vacina)
Chegou sem máscara no bar cheio, onde a música se misturava com conversas e gargalhadas altas num ambiente de indistinção de sons e ritmos. Demorou a encontrar a mesa porque prestou mais atenção nas vultosas mulheres em volta do que no amigo que lhe acenava como um náufrago que, finalmente, avista um navio. Valério estava muito atrasado.
- Demorou!
- Só um pouco.
- Quarenta minutos!
- Então, só um pouco.
- Cadê a máscara?
- Não trouxe.
- Tá maluco?
- Por que?
- A Covid!
- Cara, olha em volta. Quem usa máscara em bar? Como é que come e bebe de máscara? E na rua, quem usa? Além do mais, ela esquenta demais a minha cara.
O garçom engravatado e suado colocou dois copos de chope na mesa sem que tivessem pedido. Tentaram pedir algo para comer, mas não deu tempo. Tão logo os copos bateram grosseiramente à mesa, deu meia-volta e foi-se embora sem olhar para trás.
- Mas não pode dar mole assim. Não até tomar a vacina.
- Eu não vou tomar vacina.
- Por que?
- É perigosa.
- Mais que a Covid?
- Claro! Eu não sei de onde vem essa vacina. Como vou confiar?
- Vem dos mesmos laboratórios que fazem os outros remédios que você toma sem medo quando fica doente.
- Mas não vem da China.
- Tudo vem da China. Até o que não vem da China, vem da China.
- Essa vacina chinesa, eu sei que ela faz as pessoas mudarem de sexo.
- Fala sério que você acredita nisso!
- Até o presidente falou!
- E por que alguém faria uma vacina para as pessoas mudarem de sexo? Não faz o menor sentido.
- Cara, você que não percebe. São comunistas. Eles querem dominar o mundo e pra isso eles tem que acabar com as famílias, entendeu? Se só tiver gay, não vai ter famílias! É um plano bem bolado. Por isso criaram o Coronavírus. Para as pessoas, com medo, tomarem a vacina sem pensar!
- O que eu estou vendo é que você resolveu em algum momento parar de pensar.
- Cara, primeiro, não são ideias malucas. É a verdade que a mídia e os cientistas não mostram porque são comunistas. Segundo, e se eu quiser morrer? Qual o problema? A vida é minha!
- Verdade. A vida é sua. O negócio é que se você pega Covid, acaba espalhando. O sujeito que resolve morrer assim, resolveu também matar. Se você é um suicida, o problema é seu, mas se age como um assassino, o problema é meu. A sociedade tem o direito de se meter na sua vida. Direito de te obrigar a tomar a vacina. Do mesmo jeito que tem o direito de meter na jaula um assassino. Você é um assassino.
- Eu não quero mais chope… – Disse, já se levantando enquanto o garçom batia mais dois copos de chope na mesa, como se tivesse raiva da vida.