Parece incrível, mas já fomos o que a China é hoje: uma máquina de crescimento, fazendo parte do grupo de países que mais avançou economicamente dos anos 30 até a entrada dos anos 80 do século passado. Sem deixar as mazelas históricas e contemporâneas de lado, o Brasil transitou de uma economia mercantil exportadora para uma economia industrial moderna, no padrão da segunda revolução industrial, possibilitando uma mobilidade social inédita. Porque perdemos o rumo? Essa questão é ainda mais importante agora, quando o Brasil que apontava para o futuro está sendo mutilado no corpo e na alma. O que perdemos foi vontade política alicerçada numa visão de futuro.

Fazendo um recorte de 1951 a 1954, no segundo governo Vargas, momento mais criativo deste período de cinco décadas, foram criados BNDE, CNPq, CAPES, o projeto da Eletrobras e a Petrobras, além de um conjunto de iniciativas que se consolidaram num Brasil mais próspero e moderno.

Transversalmente a estas inovações institucionais, havia uma visão de mundo, de economia. A CEPAL havia sido criada recentemente (1948) e avançamos no entendimento das especificidades das economias periféricas (obra conjunta com outros cientistas sociais do continente) e de nossa própria economia, tendo a audácia de criar um pensamento brasileiro e latino americano com teoria e políticas econômicas que sustentassem esse caminho.

Alguns dos últimos livros de Celso Furtado, como Brasil: A construção interrompida e O longo amanhecer: Reflexões sobre a formação do Brasil, assim como o seu último artigo, publicado em novembro de 2004, no Jornal do Brasil (Para onde caminhamos?) são buscas de alternativas no sentido de um pensamento não subordinado aos centros de poder internacionais e adotado por nossas elites políticas e empresariais.

Afinal, cabe perguntar: para que servem a(s) teoria(s) e a(s) política(s) econômica(s)? Nessa questão aparentemente simples há um elevado grau de complexidade. A depender do conceito de economia, as respostas podem ir tão longe quanto nossa imaginação puder alcançar.

A economia é uma ciência plural, possui diferentes formas de percepção dos “fenômenos econômicos”. Aliás, esses mesmos fenômenos também são percebidos de formas distintas, dependendo das lentes conceituais. Vamos resumir: se a concepção e os fundamentos são de que o mercado se basta e possui as virtudes alocativas que geram eficiência e justiça suficientes para garantir o caminho da prosperidade geral, essa visão se chama de ortodoxia econômica. Entretanto, se o entendimento for de que a economia está enxertada num espaço geográfico, histórico, social e o mercado, além de ser algo distinto da sociedade, só funciona porque existem instituições e regras do jogo estabelecidas que resultem de disputas políticas, aí teremos uma perspectiva denominada de heterodoxia econômica.

Nesse sentido, podemos entender que, assim como outras áreas de conhecimento, a economia possui teorias, modelos, leis de tendência, tecnicalidades, enfim. Mas não podemos ser ingênuos. A economia nunca está pura, isolada como se faz numa experiência in vitro de laboratório. Por exemplo: o propalado teto de gastos não é o que foi anunciado. Na verdade é seletivo, assim como as propostas de reforma fiscal e administrativa. E a seletividade não se deve apenas às questões de natureza técnica, já que estão moldadas por interesses particulares. Tentando ser mais didático: se os gatos fizessem as leis, certamente os pássaros sofreriam restrições legais limitando sua capacidade de voar.

Voltando à pergunta inicial: a teoria e a política econômica servem para respectivamente, conhecermos e atuarmos sobre as leis sociais que geram a riqueza e sua apropriação pelas classes sociais, atores econômicos, ou o nome que se queira dar. Nesse processo há um ator decisivo na formação dos mercados e cada vez mais importante na medida em que as escalas ganham vida para além do mercado local. Trata-se do Estado, diferente da sociedade e do mercado, mas que está imbricado em todas as relações.

Para que tenhamos uma ideia de sua importância, basta dizer que para alguns autores da melhor tradição no pensamento econômico, o Estado é aquilo que o capital não pode ser. Não porque seja algo de mágico ou sagrado, ao contrário. Trata-se apenas de tarefas que, se não fossem cumpridas pelo Estado, o mercado não o faria porque não são do seu interesse, as quais destacamos duas: a primeira é a capacidade de investir e gastar mais quando a economia está derrubada, sem horizonte de demanda. A segunda é financiar a formação de cidadãos e fortalecer a capacidade de inovar, particularmente no caso das inovações disruptivas com investimentos em pesquisa de ponta sem perspectiva de rentabilidade pelo cálculo econômico convencional, justamente porque aí os resultados são incertos e as perdas inevitáveis.

Para o exercício do conjunto de ações que são atribuições do Estado, existem as políticas econômicas e sociais. Na segurança alimentar, energética e sanitária, por exemplo. Mas nesse breve texto, vamos nos ater às ações anticíclicas e do fomento à inovação, que são parte de um conjunto bem maior.

Os temas em pauta se vinculam a duas referências enraizadas no pensamento heterodoxo a partir da contribuição de J. M. Keynes (1883/1946) e J. Shumpeter (1883/1950). Não é preciso ter formação acadêmica em economia para saber que keynesianismo significa elevação do gasto público para dinamizar a economia e atuar anticiclicamente, assim como shumpeteriano está ligado às inovações geradoras de lucros extraordinários com ciclos expansivos e virtuosos, já que a garantia do desenvolvimento e da competitividade no longo prazo só acontece se a capacidade de inovar for realizada seguidamente.

Os dois autores tiveram entendimentos e motivações distintas, portanto, construíram fundamentações teóricas dialogando com interfaces socioeconômicas diferenciadas. Enquanto Keynes estava preocupado com dilemas de curto prazo, notadamente a recuperação da dinâmica macroeconômica e do emprego, Shumpeter analisava os ciclos econômicos, que estariam condicionados pelas inovações em processo, ou seja, horizontes de longo prazo. Nesse sentido, se desejamos um crescimento econômico com geração de emprego e distribuição de renda, temos de levar em conta as duas contribuições. Isso pode parecer óbvio, mas não é tão simples.

A questão é que na perspectiva de Keynes e Shumpeter, há muito debate, diferenças e contribuições de qualidade. Entretanto, faltam pontes no sentido de articular as contribuições destes dois grandes autores. No século XVII, o filósofo Spinoza dizia que o conhecimento era como a água dos oceanos: uma coisa só, mas que precisava ser nomeada para sabermos onde estamos. O mesmo se dava com o conhecimento, que era uno, mas poderia ser elaborado e nomeado.

Entretanto, da mesma forma que devemos estabelecer pontes entre os diferentes campos científicos e evitar a excessiva disciplinaridade do “cada um em seu quadrado”, é necessária essa mesma prática, mais ainda dentro de um mesmo campo do conhecimento onde esse desafio “interdisciplinar”, com aspas, porque estamos no mesmo espaço da economia será fértil e necessário.

Para o entendimento da teoria e das políticas econômicas no campo heterodoxo, há uma autora fundamental, que é Mariana Mazzucato (2014) em O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. Em seu livro, a discussão caminha por questões da economia voltadas para tecnologia, inovações e crescimento. Sua ênfase está nos novos setores, nos quais os investimentos públicos foram decisivos nos EUA e mais alguns países. Depois de relatar a articulação dessas inovações e sua disseminação no tecido empresarial, assim como suas implicações com as necessidades básicas da população e questões fiscais, considera que:

Os keynesianos argumentam vigorosamente quanto à importância do uso dos gastos governamentais para estimular a demanda e estabilizar a economia. Economistas inspirados em Joseph Shumpeter foram além, pedindo ao governo que gastasse também naquelas áreas específicas que aumentam a capacidade de inovação de um país. (Página 60).

Nessa perspectiva, Mazzucato assinala que nas agendas de governos progressistas, os investimentos em áreas de programas que aumentam a produtividade são menos populares do que os gastos em bem-estar social, como saúde e educação. Mas a questão é que para viabilizar essas políticas há de haver uma base material, ou seja, capacidade de financiamento. Portanto, o desafio é lançado:

O que falta à boa parte da esquerda keynesiana é uma agenda de crescimento que crie e simultaneamente redistribua as riquezas. A combinação das lições de Keynes e Shumpeter pode fazer com que algo assim aconteça.

Keynes era inglês e Shumpeter austríaco. Suas teorizações estão voltadas para economias desenvolvidas, com capacidade produtiva instalada e capazes de apresentar uma resposta terapêutica favorável na medida em que se aplique a adrenalina do gasto público. Para os países de economias capitalistas retardatárias, os desafios são maiores, pois existem condicionamentos adicionais. Nossa matriz social e suas elites econômicas estão marcadas pelo latifúndio, a escravidão e a monocultura. Essa origem e suas implicações foram brilhantemente analisadas por autores como Caio Prado Júnior, Celso Furtado e novas gerações de intelectuais. Entretanto, já tivemos avanços e recuos pendulares, como o de agora, marcado pelo retrocesso.

Para reconstruir as bases de nossa economia será necessário criar e gerir a viabilidade mútua do crescimento da produção e do emprego com a retomada dos investimentos públicos em infra-estrutura de transporte, energia, saneamento e habitação. Da mesma forma, nosso sistema nacional de inovação terá de ser recuperado e fortalecido visando reverter o quadro de esvaziamento dos últimos anos, criando um contexto econômico de dinamismo, com capacidade de se colocar nas cadeias produtivas globais de maior valor agregado, ou seja: uma competitividade com base na capacidade de inovar.

Será necessária vontade política, engenho e arte. E na teoria e política econômica, um chamado necessário: Keynesianos e Shumperianos uni-vos!

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