O tempo fechou. Sempre fecha. E vem o silêncio. Que parece infinito. Provocante. Ansioso. Insinuante de uma tranquilidade impossível. Antes do estrondo, o grito que rompe o silêncio. Não um grito qualquer, mas o de quem está ali disposto a morrer para matar. Grito de fúria. De desabafo. Vem o tiro. Depois outro. Rajada. Mais gritos. De ordens. De medo. De horror. A adrenalina dispara. Olhos arregalam-se.

A explosão da granada jogou Yuri no chão. Perdido. Assustado. O zunido nos ouvidos tornou a cena estranha. Como num filme de trilha sonora errada. Correria. Uma criança para no meio, chorando, perdida, assustada. Tenta levantar-se para tirá-la dali. A cabeça está mais rápida que o corpo. Alguém a pega rápido no colo. Alívio. Outro vem por trás e atira nos dois. Yuri pega o fuzil e dispara enquanto grita e chora.

Do helicóptero, rajadas despejam balas aqui e acolá. Sem mira. Indiferentes. Anunciam a subida do blindado pelas ruas estreitas. Yuri atira inutilmente ora no helicóptero, ora no blindado. Atrás dele, os soldados mais bem armados e treinados. Yuri tem um fuzil potente, mas mal sabe como usar. Achava que atirar era o mesmo que conseguir puxar o gatilho e apontar para a direção certa. Descobriu que atirar quando atiram de volta é diferente.

Já é. Já é! Ali! Corre! Um tiro estilhaça o canto da parede. Disparo dos soldados que vem atrás do blindado. Se chegarem perto, já era. Já foi. Melhor fugir. Deixa a mercadoria para trás. Mochila também. Agora, é atirar para fugir. Pega a granada e joga. Tinham que tirar o pino! Que pino? Ninguém ensinou Yuri a usar uma granada.

No alto da favela, a trilha leva para o morro vizinho. Os policiais não seguem dali porque sabem que chegariam do outro lado em desvantagem. Polícia não trabalha na desvantagem. Yuri corre como pode. Esconde o fuzil no mato. A pistola e o cordão de ouro também. Agora, é só mais um.

O Capitão comunicou a vitória pelo celular. Nenhuma baixa. Oito vagabundos mortos. E uma criança. Essa criança vai dar merda. Não tem como dizer que criança é bandido. Quem atirou? Sei lá. Foi vagabundo.

A notícia é a continuação da guerra por outros meios. Rápida como balas. Barulhenta como explosões. Indiferentes como rajadas cuspidas do alto de um helicóptero ziguezagueante. Bandidos na vala! CPF cancelado! Grita o apresentador de terno, gravata e cara nervosa. Parabéns à polícia! E rebola. Guerra na favela é comédia.

No bairro chique, a moça bonita acha esses programas baixo nível. Povão demais. Prefere outros, chiques como ela. Com gente contida falando maquinalmente. Vê, chocada, a guerra. Não esta, que é rotina desagradável. Aquela. Mais longe, mas que ela sente mais perto. Guerra de gente branca como ela. Quase europeia como ela acha que é.

A guerra é a continuação da política por outros meios. Yuri já tinha ouvido isso, mas só entendeu depois que a milícia tomou conta do morro. Ainda tem tiro. Mas só para matar gente certa ou festejar. Também tem um deputado. Que se não for reeleito, vai ter terror. Yuri virou cabo eleitoral, de fuzil e santinho na mão. Agora é traficante e miliciano.

Pelo celular, vê a guerra lá de longe. Com uma gente diferente que ele acha difícil de imaginar tomando tiro. Acha bonito o lugar. De plantas e prédios diferentes dos de cá. De tiros iguais. Explosões maiores. E noticiários que não têm graça nenhuma.

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Ilustração: Mihai Cauli

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