Em 4 de fevereiro, algumas semanas antes da entrada das tropas russas na Ucrânia, China e Rússia assinaram, após reunião entre representantes dos dois países em Beijing que contou com a presença de Vladimir Putin e Xi Jinping, a “Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais Entrando em uma Nova Era e o Desenvolvimento Sustentável Global” (disponível em http://en.kremlin.ru/supplement/5770). A tradução é livre no título e nos trechos citados do documento.

A respeito dos acontecimentos da Ucrânia, ao menos dois parágrafos da citada declaração valem ser lidos com atenção, em especial neste momento em que a China se propõe a “mediar” um processo de cessar fogo e administração da crise entre russos e ucranianos. Em especial se for verdadeira a suposição de que os chineses foram de alguma maneira, mesmo que não em detalhes, informados dos movimentos a serem levados adiante pelos russos. Isso porque evidentemente os russos deveriam ter uma noção da reação dos Estados Unidos à sua ação na Ucrânia e dos movimentos a serem levados adiante por EUA e outros atores relevantes (como a União Europeia e os países europeus membros e não membros da UE, Japão e outros). Além disso, vale também trabalhar com a avaliação de que os chineses, dados os seus movimentos políticos de prazos mais longos, não colocariam no papel algo a ser descartado em apenas algumas poucas semanas. Vamos então aos trechos do documento que parecem relevantes no caso, ambos no item III da Declaração.

O primeiro diz: “A Rússia e a China se opõem às tentativas de forças externas de minar a segurança e a estabilidade em suas regiões adjacentes comuns, pretendem combater a interferência de forças externas nos assuntos internos de países soberanos sob qualquer pretexto, se opõem às revoluções coloridas e aumentarão a cooperação nas áreas mencionadas.” A referência a “revoluções coloridas” é uma quase explícita referência à Ucrânia, e o trecho vem na sequência de outro (“O lado russo reafirma seu apoio ao princípio de Uma Só China, confirma que Taiwan é uma parte inalienável da China e se opõe a qualquer forma de independência de Taiwan”) – em que os russos reafirmam a sua concordância com a demanda chinesa sobre Taiwan. Para bom entendedor, não precisa de muita coisa mais para entender a explicitação da troca de apoios entre os dois países nessas reivindicações específicas (neutralidade ucraniana, sem interferência dos EUA, e apoio russo à reincorporação da “província rebelde”, como gostam de tratar os chineses, de Taiwan à República Popular da China).

A respeito da OTAN, o trecho seguinte também é bem explícito: “As partes acreditam que determinados Estados, alianças e coalizões militares e políticas buscam obter, direta ou indiretamente, vantagens militares unilaterais em detrimento da segurança de outros, inclusive empregando práticas de concorrência desleal, intensificando a rivalidade geopolítica, alimentando o antagonismo e o confronto, e comprometendo seriamente a ordem da segurança internacional e a estabilidade estratégica global. As partes opõem-se a um maior alargamento da OTAN e apelam à Aliança do Atlântico Norte para que abandone as suas abordagens ideologizadas da Guerra Fria, respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade das suas origens civilizacionais, culturais e históricas e exerça uma atitude justa e objetiva em relação ao desenvolvimento pacífico de outros Estados.”

Isto é, qualquer ampliação da OTAN é vista com maus olhos no documento, em especial se a ampliação se dá em detrimento da segurança de outros. No caso, leia-se, da Rússia.

A China tem enormes interesses tanto em relação à Rússia quanto em relação à Ucrânia. Tem um comércio pujante com os dois países, e uma aproximação geopolítica importante. Vale observar que algumas das possibilidades de conexão de mercados e produção apontadas na estratégia chinesa expressa na chamada “Nova Rota da Seda” (ou “One Belt, One Road”, Cinturão e Rota) passa pela Ásia Central, Rússia e Ucrânia e Belarus, em direção à União Europeia. A tensão na região está longe de interessar aos chineses. Apesar disso, assumiram um compromisso bastante explícito com os russos sobre o tema.

Assim, partindo destas explicitações, a tentativa de mediação e administração da crise por parte da China já parte de algumas posições tomadas e previamente conhecidas por todas as partes, inclusive as que a chamam a assumir uma posição mais ativa para resolver essa situação de guerra. Se levada adiante com sucesso, a participação chinesa colocará o país em outro patamar geopolítico, assumindo um papel de ainda mais destaque no sistema de poder mundial, para além inclusive de sua enorme relevância econômica. Mas o movimento também inclui riscos. Vale ver até que ponto os tradicionalmente cautelosos diplomatas e dirigentes chineses estarão dispostos a assumi-los.

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

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