Romance do século XIX, escrito por uma mulher negra, joga luz sobre a Diáspora Africana, a Escravidão e a participação das mulheres na luta contra a escravidão no Brasil
Por ocasião do dia 8 de março, eu me planejei para escrever sobre Carolina Maria de Jesus, pois ela recebeu o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 25/02/2021. Queria escrever sobre isso porque ela foi a primeira autora negra que eu li quando já era adulta e trabalhava no Museu Afro-Brasil. “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus é o primeiro livro que eu li escrito por uma escritora negra. Eu repeti isso para mostrar o quão nosso sistema de ensino é eurocêntrico e patriarcal. Posso dizer com segurança que li quase todos os livros do período do Romantismo na literatura brasileira quando estava no Ensino Médio. Entretanto, não lemos nenhuma autora. Como há várias publicações circulando sobre Carolina nos últimos dias, resolvi reler a obra de Maria Firmina dos Reis.
Li a obra de Reis a partir do meu campo de estudo, que é a história da África e de suas diásporas. Portanto, dei atenção especial a dois personagens escravizados Túlio e Susana. Por meio destes, Maria Firmina dos Reis traz uma contribuição essencial sobre dois aspectos: as histórias dos africanos e de seus descendentes nas diásporas, o desejo de liberdade nutrido por eles e o pensamento abolicionista; e a história da África que circulava oralmente, contatada por mulheres africanas, como Susana, que segue abaixo:
“Vou contar-te o meu cativeiro.
Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o amendoim eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah, nunca mais devia eu vê-la.
Ainda não tinha vencido cem braças do caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo eminente que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira — era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível… A sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares, onde tudo me ficava — pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus, o que se passou no fundo da minha alma, só vós o pudestes avaliar!
Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura, até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé, e, para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa: davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca; vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim, e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!
Muitos não deixavam chegar esse último extremo — davam-se à morte.
Nos dois últimos dias não houve mais alimento. Os mais insofridos entraram a vozear. Grande Deus! Da escotilha lançaram sobre nós água e breu fervendo, que escaldou-nos e veio dar a morte aos cabeças do motim.
A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade fora sufocada nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades.
Não sei ainda como resisti — é que Deus quis poupar-me para provar a paciência de sua serva com novos tormentos que aqui me aguardavam.
O comendador P. foi o senhor que me escolheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de horror ao aspecto de meus irmãos. . . os tratos, porque passaram, doeram-me até o fundo do coração. O comendador P. derramava sem se horrorizar o sangue dos desgraçados negros por uma leve negligência, por uma obrigação mais tibiamente cumprida, por falta de inteligência! E eu sofri com resignação todos os tratos que se dava a meus irmãos, e tão rigorosos como os que eles sentiam. E eu também os sofri, como eles, e muitas vezes com a mais cruel injustiça.
Pouco tempo depois casou-se a senhora Luíza B., e ainda a mesma sorte: seu marido era um homem mau, e eu suportei em silêncio o peso do seu rigor.
E ela chorava, porque doía-lhe na alma a dureza de seu esposo para com os míseros escravos, mas ele via-os expirar debaixo dos açoites os mais cruéis, das torturas do anjinho [instrumento de tortura] do cepo e outros instrumentos de sua malvadeza, ou então nas prisões onde os sepultavam vivos, onde carregados como ferros, como malévolos assassinos acabavam a existência, amaldiçoando a escravidão, e quantas vezes os mesmos céus.
O senhor Paulo B. morreu, e sua esposa, e sua filha procuraram em sua extrema bondade fazer-nos esquecer nossas passadas desditas! Túlio, meu filho, eu as amo de todo o coração, e lhes agradeço: mas a dor que tenho no coração, só a morte poderá apagar! Meu marido, minha filha, minha terra.
Minha liberdade.”
O trecho acima, narrado em primeira pessoa, pertence à personagem ficcional Susana, uma anciã africana, escravizada, que vivia na casa de sua senhora Luzia B., uma mulher branca que foi destituída de seus bens pelo seu irmão, depois que se tornou viúva. Luzia B. vivia numa casa pobre com sua filha Úrsula e mais duas pessoas escravizadas, Túlio e Susana. O foco do livro é o romance entre um casal de brancos, a pobre Úrsula e o rico Tancredo. O contexto é a escravidão no Brasil.
Este excerto encontra-se no livro Úrsula de Maria Firmina dos Reis, mulher negra que nasceu no Maranhão e teve uma existência longa e produtiva – viveu quase 100 anos (1825-1917). Ela foi contemporânea de outros famosos escritores negros, tais como Luiz Gama e Machado de Assis. Luiz Gama é considerado a “primeira voz negra da literatura no Brasil”, em razão de seu livro “Primeiras Trovas Burlescas”, publicado em 1859. Neste mesmo ano Maria Firmina dos Reis publicou “Úrsula”. Assim, podemos declarar que Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis foram as primeiras vozes negras da literatura no Brasil. De todo modo, ela é considerada a pioneira em três aspectos da história brasileira: a primeira escritora brasileira, a primeira autora a ter um livro publicado no Brasil e também é a autora do primeiro romance abolicionista.
Vários temas podem ser abordados nesta obra, sob a perspectiva da Letras, História intelectual, psicologia, história da escravidão, abolicionismo, gênero, interseccionalidade e outros. O livro tem 20 capítulos curtos e está escrito por uma narradora que usa a segunda pessoa do plural. Contudo, quando se refere às falas das mulheres, estas se expõem na primeira pessoa, a exemplo da narração de Susana copiada acima.
A autora Maria Firmina dos Reis era professora e escritora. Ensinou Língua Portuguesa no setor público. Mais tarde fundou uma escola pública onde oferecia ensino gratuito para crianças de ambos os sexos. Além de educadora, era uma intelectual de formação clássica europeia, como se pode notar nas referências e nomes dos personagens do livro que fazem alusões a histórias bíblicas, bem como à história da Itália, e do Iluminismo. Inclusive, o título do livro remete à narrativa hagiográfica da Santa Úrsula. O drama de Úrsula no livro de Reis é semelhante à lenda da santa com o mesmo nome.
O meu objetivo não é tratar desses aspectos, mas mostrar que a autora utilizou a história clássica europeia para abordar temas complexos para o Brasil nos anos 1850, no contexto do debate sobre a abolição do tráfico: como operava a captura de pessoas e o tráfico transatlântico de escravizados na costa atlântica africana, a passagem dos africanos e africanas pelo atlântico nos navios negreiros até chegarem ao Brasil, as revoltas feitas por eles nos referidos navios, a escravidão nas fazendas, a violência desta instituição, o papel reservado às mulheres brancas e negras numa sociedade patriarcal e escravista e, por fim, e não menos importante, a omissão, conivência e participação da Igreja Católica com a escravidão dos africanos e seus descendentes.
Maria Firmina dos Reis conviveu com crianças de vários grupos sociais no contexto escolar. Assim, ela sabia do peso do racismo e do patriarcalismo naquela sociedade. Isso explica porque a autora não assinou “Úrsula”, mas adotou o pseudônimo “Uma Maranhense”. Publicada pela primeira vez em 1859, a obra passou mais de um século desconhecida do público, certamente por causa de sua condição de mulher negra e do conteúdo da obra. Assumindo um tom fortemente abolicionista, a autora denunciava os horrores da escravidão contra mulheres idosas, jovens, crianças e homens.
Maria Firmina dos Reis não cita os nomes dos lugares onde viviam seus personagens, nem no Brasil e na África. Também não menciona o nome das instituições e nem os sobrenomes das pessoas. Este silêncio é proposital, pois ela usa três asteriscos para indicar a supressão das palavras, tais como: “cidade de ***”, “Tancredo de ***”, “comendador P***”, e etc. Tudo sugere que ela não queria envolver nomes de famílias locais e nem situar o romance historicamente em um lugar. O que acontecia naquelas fazendas podia acontecer em outras propriedades no Brasil e nas Américas.
Pode-se comparar esta narrativa com outras narrativas feitas por africanos e seus descendentes nas Américas nos séculos XVIII e XIX. Tais como Olaudah Equiano e Mohamad Baquaqua, cujas autobiografias são fartamente mobilizadas pela historiografia para mostrar o capital intelectual dos africanos escravizados nas Américas.
No século XIX, intelectuais negros e negras dos Estados Unidos escreveram sobre suas trajetórias, como Sejourner Truth, Alexander Crummell, W.E.B. Dubois, Martin Delany, Frederick Douglass e Carter Woodson; o mesmo aconteceu no Haiti, com Antenor Firmin e Sylvester Williams; de outros locais do Caribe, conhecemos os escritos de Edward Blyden, entre outros, que colocaram as diásporas africanas nos centros de suas preocupações.
No século XX, a produção intelectual sobre esse tema, teve uma vigorosa ascensão com movimentos como o Harlem Renaissance, o garveysmo, o Pan-Africanismo, a Négritude, o Teatro Negro de Abdias Nascimento; e as independências africanas. Contudo, os nomes mais conhecidos são os de escritores, pois os estudos sobre as diásporas africanas e a abolição ainda continuam focados em experiências masculinas.
O ponto que quero destacar é como Maria Firmina dos Reis utiliza-se dos personagens para colocar a diáspora africana e a abolição no centro de sua narrativa. Maria Firmina dos Reis revela para o público histórias de uma africana, chamada ficticiamente de Susana, que pode corresponder com trajetórias reais de pessoas que ela conheceu ou ouviu falar sobre. Susana destaca que era uma moça livre que vivia em alguma sociedade do litoral Atlântico do continente africano, onde brincava de catar conchinhas na praia, casou e teve uma filha. Quando foi capturada, era período de colheita de milho e inhame. Foi agarrada por dois homens que a venderam para comerciantes em algum porto, de onde foi transportada para o Brasil em meio a “trezentos companheiros de infortúnio”.
É impressionante a narrativa que Susana faz da passagem pelo Atlântico: precária alimentação, adoecimentos em virtude da fome e falta de ar, as mortes de seus companheiros em alto-mar e também das revoltas feitas pelos africanos a bordo do navio, que foram duramente punidos. Após a chegada no Brasil, Susana trata das experiências na diáspora: a escravidão numa fazenda, a violência contra mulheres, as crueldades dos senhores contra as pessoas escravizadas e também dos laços parentais não-biológicos estabelecidos com colegas de infortúnio.
Por fim, a autora destaca que a ideia de liberdade de Susana não foi sucumbida pelo trauma da escravidão e da passagem do meio. As fortes e vívidas lembranças da colheita, da filhinha, do marido e da liberdade em sua terra natal continuavam a embalar seus anseios por liberdade. Inclusive, o assassinato cruel de Susana cometido pelo sádico comendador é um ponto alto para expor dois contrapontos: de um lado, as ideias de liberdade e honra de Susana; de outro, a barbaridade dos escravizadores e do sistema escravista. A morte, como mostram vários autores e autoras, foi uma forma de enfrentamento à escravidão.
Para finalizar, retomo o título deste ensaio: o livro de Maria Firmina dos Reis é um trabalho pioneiro no Brasil que relaciona a história da África e de suas diásporas, pelo olhar de uma mulher. Este livro lança luz sobre a Diáspora Africana, a Escravidão e a Abolição no Brasil. Maria Firmina dos Reis sabia que não estava escrevendo um romance para “embalar os sonos” da sociedade escravista brasileira, para usar uma expressão da grande escritora Conceição Evaristo. Isso explica porque o seu romance abolicionista ficou mais de 100 anos desconhecido do público e demoramos tanto a conhecer a narrativa de Susana. Definitivamente, Maria Firmina dos Reis precisa ser mais conhecida de acadêmicos, do grande público e, especialmente nas escolas.