Trump: bufão ou estrategista?

As preocupações entre os homens brancos nativos e imigrantes europeus sobre os imigrantes chineses suprimindo os salários, juntamente com os temores sobre a mudança cultural, levaram à aprovação da lei. A lei levou a uma redução na oferta total de mão de obra dos trabalhadores chineses.

Ler e refletir sobre os artigos publicados recentemente na imprensa e nas redes sociais é um excelente exercício para conhecer e reconhecer as concepções de vários articulistas e intelectuais de 144 toques.

A estupefação da maioria deles ao analisar as medidas do governo Trump mostra que a ideologia supera o reconhecimento do fato de que ele está colocando em prática o que prometeu na campanha. A ideia dominante inicialmente de que as tarifas seriam apenas uma forma de pressionar os parceiros comerciais para acordos mais benéficos aos EUA logo de desfez.

Junto com essa afirmação ideológica e política do Trumpismo, também ficou claro o seu outro lado, que busca desviar a atenção do elemento central da sua estratégia econômica e geopolítica com afirmações improváveis de serem postas em prática como a transformação do Canadá no 51º estado americano, a invasão da Groenlândia e outras inócuas, como a mudança do nome do Golfo do México para Golfo da América entre outras.

Se não cairmos na tentação de nos fixarmos nas suas afirmações diárias e olharmos com atenção para o que está ocorrendo na realidade, fica mais fácil entender a sua estratégia. Bufão para criar confusão e distração, com a finalidade de encobrir o seu principal objetivo: America First e Make America Great Again (MAGA) – a estratégia para retomar a hegemonia americana. Ambos operam em conjunto: histrionismo e estratégia política.

A respeito do histrionismo, não vamos nos deter aqui, por perda de tempo.

A estratégia de Trump tem dois pilares que se completam e procuram integrar politicamente: o nacional e o internacional. Ele considera a soberania dos EUA enfraquecida pela perda do poder industrial, pelo dólar forte, o duplo déficit comercial e fiscal e pela Diversity, Equity and Inclusion (DEI), que significa diversidade, equidade e inclusão. DEI é um conjunto de estratégias e práticas que promovem a valorização das diferenças individuais e a igualdade de oportunidades para todos.

A DEI e as instituições e organizações que elaboram e operam as políticas sociais nos EUA já estão sob severo ataque e destruição. Educação, Saúde, Meio Ambiente, Regionalização, Ciência e Tecnologia viraram o objeto central da afirmação cada um por si e o Estado por ninguém. Por ninguém não, me desculpem. Para o grande capital tradicional, bigtechs e financeiro. Similar ao grande acordo com o nazismo na Alemanha. Similar, pois ainda é cedo para afirmar com certeza. Mas sem dúvida um governo autoritário, conservador, negacionista e de extrema direita. Milei o inspirou ou foi inspirado por ele. Os governos de extrema direita na Europa serviram de exemplo ou foram inspirados por Trump1?

Uma das suas principais bandeiras políticas é atuar sobre o desemprego industrial, majoritariamente localizado no cinturão da ferrugem como consequência do dólar forte, que favorece a importação e a saída das empresas americanas para produzir em locais com salários mais baixos e recursos naturais sem as regulamentações ambientais. Para proteger a produção e o emprego americanos, as tarifas e as deportações dos imigrantes e a proibição de entrada seriam estabelecidas como políticas centrais. Por último, mas não menos importante, uma guerra aberta e corte de verbas contra as universidades e instituições de pesquisa que não revogassem a DEI.

Todas essas políticas foram aplicadas no passado, na história americana, e contrariam o mito da excepcionalidade americana e sua superioridade moral e democrática. Também enfraquece o argumento da revolução americana como superior à francesa, como exemplo para o processo democrático.  Talvez para uma sociedade liberal, sim. Mas democrática, não.

Um exemplo histórico da política de deportação foi a Lei de Exclusão Chinesa de 1882 (The 1882 Chinese Exclusion Acts) que proibiu quase todos os trabalhadores chineses de imigrar para os Estados Unidos. Em 1880, havia cerca de 100.000 chineses nos Estados Unidos, quase todos vivendo em oito estados do Oeste: Arizona, Califórnia, Idaho, Montana, Nevada, Oregon, Washington e Wyoming. Noventa e quatro por cento deles eram homens em idade produtiva e representavam 21% dos imigrantes no Ocidente. As preocupações entre os homens brancos nativos e imigrantes europeus era a redução dos seus salários pelos imigrantes chineses, juntamente com os temores sobre a mudança cultural, levaram à aprovação da lei. A lei levou a uma redução na oferta total de mão de obra dos trabalhadores chineses. Muitos trabalhadores chineses partiram após a aprovação da lei porque não poderiam voltar para casa para visitar a família na China e depois retornar aos Estados Unidos, e as leis anteriores os impediram de trazer suas esposas para os Estados Unidos. As empresas se opuseram à lei porque não achavam que seriam capazes de substituir os trabalhadores chineses por outros trabalhadores. Sua visão era a de que, na maioria dos casos, os trabalhadores chineses não eram substitutos dos trabalhadores nativos. Em vez disso, eles poderiam ser complementares, por exemplo, se seu trabalho manual criasse cargos gerenciais para trabalhadores não imigrantes. O único grupo que se beneficiou foi o de homens brancos nascidos no Ocidente que entraram no setor de mineração quando havia menos trabalhadores chineses. Os efeitos duraram até 1940.

Ao longo de sua história, os EUA utilizaram o protecionismo para proteger seus interesses econômicos e industriais, especialmente em períodos de consolidação nacional e de expansão industrial.

O protecionismo está profundamente enraizado na história dos EUA, refletindo o desejo do país de proteger seus interesses econômicos e de garantir sua autonomia em relação a potências estrangeiras, desde os dias da Boston Tea Party até as disputas comerciais modernas.

A longa tradição protecionista na política econômica americana começa com Alexander Hamilton, passa por Lincoln, Teddy Roosevelt, Franklin Roosevelt e Eisenhower. Alexander Hamilton, o primeiro secretário do tesouro norte-americano (1789-1795), está entre os principais formuladores de medidas protecionistas que estimularam a instalação e desenvolvimento da indústria manufatureira norte-americana.

O projeto de Hamilton se opunha frontalmente ao liberalismo inglês. A Guerra Civil no século XIX teve como causa o embate entre o protecionismo da União, que representava as indústrias do Norte, e o liberalismo da Confederação, representando os interesses do Sul agrícola e escravista. Lincoln teria sido eleito a partir do voto decisivo dos estados protecionistas, especialmente New Jersey e Pensilvânia. A vitória dos estados do Norte na Guerra Civil transformou os Estados Unidos num dos mais assíduos praticantes da proteção à indústria infante até a Primeira Guerra Mundial. Thomas Jefferson tentou, em vão, proibir a publicação dos “Principles of Political Economy and Taxation”, de David Ricardo nos Estados Unidos já que, segundo a análise de muitos americanos da época, era uma obra excessivamente liberal. Adam Smith, o autor favorito dos liberais americanos, escreveu que a melhor estratégia de desenvolvimento para os Estados Unidos estaria no aproveitamento da agricultura, sua vantagem comparativa natural, e não em práticas protecionistas para o desenvolvimento da indústria. Acompanhar a história do protecionismo americano ajuda a perceber como a retórica de cada país muda ao longo dos estágios de desenvolvimento econômico. A Inglaterra que começou fortemente protecionista no século XVI mudou sua retórica ao conquistar a supremacia industrial nos anos 1800. O mesmo ocorreu com os EUA do século XX.

As tarifas são as mais fortes das medidas econômicas de Trump, porque estão a seu exclusivo critério, e ele pode impô-las ou retirá-las à vontade. Elas permitem que a conexão entre a política industrial interna e a “destruição destrutiva” da ordem liberal mundial multilateral que vigora há oitenta anos, construída e liderada pelos EUA seja feita de forma integrada. Por onde anda a Organização Mundial do Comércio (OMC)? O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial? Todas essas instituições supostamente deveriam estar criticando abertamente o protecionismo trumpista. Alguém sabe ou alguém viu algo nesse sentido?

Em um mundo simples – como o retratado nos livros de economia –, as tarifas recairiam diretamente sobre os consumidores ou produtores e, de qualquer forma, promoveriam a substituição de importações em ambos os lados da barreira tarifária. No mundo real das complexas cadeias de suprimentos e produção, elas são altamente disruptivas e podem matar os lucros das principais empresas americanas.  Isso parece estar por trás das idas e vindas sobre a aplicação delas ao Canadá e ao México, devido às fortes reclamações das montadoras.

A China, contra a qual a guerra tarifária está em andamento, está reagindo. As tarifas dos EUA sobre a China forçarão as cadeias de suprimentos de muitos produtos chineses a serem desviadas para outros países asiáticos. As tarifas da China atingirão os agricultores americanos, que vendem uma grande parte de seu trigo, milho, arroz e carne para a China. Ambos os lados se ajustarão. Uma consequência importante pode estar nos mercados de chips e software de última geração, à medida que os EUA se movem para restringir ou encerrar aplicativos chineses como TikTok, DeepSeek e WeChat, sem mencionar o RedNote. Esse parece ser o principal objetivo das tarifas, dada a grande influência de Musk e das bigtechs no governo Trump.

Ainda não sabemos onde as tarifas de Trump serão estabelecidas. É possível um regime geral de tarifas elevadas. O que isso traria? Preços mais altos para os consumidores americanos e lucros mais altos para empresas protegidas por barreiras tarifárias. Isso trará de volta empregos e produção para as costas americanas? Provavelmente não. Se o governo quer mais (e melhor) produção, ele precisa de ferramentas extras: diretivas obrigatórias de investimento, impostos sobre lucros excedentes, alocação de crédito e controle de preços, compra pública e propriedade de novas fábricas – e, acima de tudo, supervisão pública competente do desempenho privado. Assim foi feito no New Deal e na mobilização para a Segunda Guerra Mundial – criando a era de domínio americano à qual Trump gostaria de retornar.

Incerteza e caos são os fatores finais na operação de Trump. Os vencedores, em geral, serão especuladores financeiros com dedos rápidos e (especialmente) conhecimento interno. Aqueles em posição de entrar e sair rapidamente de ações, títulos e imóveis – e talvez até mesmo entrar e sair do dólar a partir de uma base em criptomoedas – podem ser os maiores vencedores. Os principais predadores financeiros e tecnológicos, já no governo de Trump, podem acabar no controle de toda a economia.

Por último e mais importante: o dólar como moeda de referência universal. De acordo com Trump, os Estados Unidos importam demais porque são um bom cidadão global que se sente obrigado a fornecer aos estrangeiros os ativos em dólares de reserva de que precisam. Em suma, a manufatura dos EUA está em declínio porque os EUA são um bom samaritano: seus trabalhadores e classe média sofrem para que o resto do mundo possa crescer às suas custas.

O status hegemônico do dólar também sustenta o excepcionalismo americano. As compras de títulos do Tesouro dos EUA pelos bancos centrais estrangeiros permitem que o governo dos EUA incorra em déficits comercial e fiscal. E por ser o eixo dos pagamentos internacionais, o dólar hegemônico permite que o presidente exerça o equivalente moderno da diplomacia das canhoneiras: sancionar à vontade qualquer pessoa ou governo.

Para Trump, esse poder exorbitante do dólar não é suficiente para compensar o sofrimento dos produtores americanos que são prejudicados por estrangeiros cujos banqueiros centrais exploram um serviço (reservas em dólares) que os EUA lhes fornecem gratuitamente para manter o dólar supervalorizado. A América está se deteriorando pela glória do poder geopolítico e propiciando que os outros acumulem o que seria das empresas americanas. Essas riquezas importadas beneficiam Wall Street e os corretores de imóveis, ao voltarem para os EUA sob a forma de aplicações em títulos públicos, compra de ações no mercado secundário e de imóveis. Ocorre à custa das pessoas que o elegeram duas vezes: americanos que produzem os bens “viris”, como aço e automóveis, de que uma nação precisa para permanecer viável e que estão em condições precárias.

E essa não é a pior das preocupações da sua concepção política. Ele está cada vez mais convencido de que um terrível ponto de inflexão está se aproximando: à medida que a produção dos Estados Unidos diminui em termos relativos, a demanda global pelo dólar aumenta mais rápido do que a renda dos EUA. O dólar então tem que se valorizar ainda mais rapidamente para acompanhar as necessidades de reserva do resto do mundo. Isso não pode durar para sempre.

Pois quando os déficits dos EUA excederem algum limite, os estrangeiros entrarão em pânico. Eles venderão seus ativos denominados em dólares e encontrarão alguma outra moeda para acumular. Os americanos serão deixados em meio ao caos internacional com um setor manufatureiro destruído, mercados financeiros abandonados e um governo insolvente. Esse cenário de pesadelo o convenceu de que ele está em uma missão para salvar a América: que ele tem o dever de inaugurar uma nova ordem internacional. E essa é a essência de seu plano: efetuar em 2025 um choque global que encerre o sistema de Bretton Woods que a partir de 1971 liderou a era da financeirização.

O segundo mandato Donald Trump está apenas no começo. Ele segue o curso histórico do imperialismo americano: destruir o meio ambiente, fazer guerra e produzir desigualdade por todo o mundo, em todo lado. É a tentativa de Trump de ressuscitar a unipolaridade dos EUA (“a superioridade americana”) e voltar a um período da história do sistema internacional que está em processo de destruição radical. Ele quer destruir para voltar ao passado de glória. Qual será a nova configuração do sistema internacional? O Oriente Médio já foi deixado nas mãos de Israel. A Europa que se entenda (ou não) com a Rússia. A América Latina continuará com suas veias abertas para os americanos com a aliança Trump e Milei. Fica com as mãos livres para enfrentar a China em um duelo ao estilo do velho oeste. Será esse o futuro do passado ou o passado do futuro? A conferir.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “Que maneira é essa de Make America Great Again?”, de Paulo Nogueira.