A Agenda pós-2030 e a complexa governança dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil
A Cúpula dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que ocorreu entre 18 e 19 de setembro durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque, procurou sensibilizar lideranças mundiais sobre os impactos de eventos climáticos com reflexos dramáticos em populações e regiões do mundo. De fato, estudos recentes demonstram que as pressões da humanidade em termos de produção e consumo, bem como de devastação dos recursos naturais, já transcenderam alguns dos limites que mantêm o planeta Terra funcionando de maneira equilibrada, tais como integridade da biosfera, da atmosfera, dos oceanos e do clima. (Ver estudo)
A Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram desenhados como a resposta política internacional aos grandes desafios que a humanidade vem enfrentando há décadas. Aprovada por unanimidade pelos 193 Estados-Membros da Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro de 2015, a Agenda 2030 tem suas origens nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que vigoraram entre 2000 e 2015.
Os ODS avançam em termos da:
- (i) abrangência, ao envolver países desenvolvidos e em desenvolvimento em um quadro comum de preocupações e aspirações;
- (ii) ambição, ao propor soluções integradas e indivisíveis nos pilares ambiental, econômico e social do desenvolvimento sustentável, a partir de 17 objetivos, 169 metas e 232 indicadores; e
- (iii) inclusão, ao promover a participação de atores diversos com base no lema “não deixar ninguém para trás”.
Objetivos globais como os ODM e os ODS nutrem uma grande ambição de mudanças, mas para que sejam de fato concretizados requerem um desenho de governança, ou seja, uma estrutura de orquestração de um sistema complexo de relações entre organismos internacionais, redes transnacionais e governos nacionais. Ademais, por sua natureza não-legalmente vinculante, a implementação dos ODS estabelece laços que vão muito além dos governos nacionais, exigindo o envolvimento de entidades dos poderes legislativo e judiciário, bem como dos governos locais e da sociedade civil organizada. Este processo que já foi chamado de tropicalização e que lá fora é denominado de localização das metas, no Brasil definimos como territorialização dos ODS, ou a incorporação das metas globais consoante as realidades e especificidades dos territórios e seus contextos culturais e sócio-políticos domésticos.
Outro estudo recente “Four governance reforms to strengthen the SDGs”, publicado na Revista Science, aponta que esta primeira fase da implementação dos ODS no mundo não levou a uma reorientação transformadora de sistemas políticos e sociedades. Para tanto, propõe um conjunto de impulsos para dar nova vida aos esforços para alcançar os objetivos globais nas seguintes direções: a diferenciação de responsabilidades entre países menos desenvolvidos e países ricos, que devem cumprir compromissos nacionais mais ambiciosos no quadro global dos ODS; a dinamização pelo envolvimento de múltiplos atores, especialmente da sociedade civil, no processo de revisão e elaboração de relatórios; alinhamento dos marcos normativos nacionais às metas a serem alcançadas; bem como o fortalecimento das institucionalidades mediante mecanismos mais coerentes de consecução das aspirações pretendidas. (Biermann, 2023)
Os estudos recentes The complex governance of the 2030 Agenda and the steering effects of implementing the SDGs in Brazil (2015-2022), publicados no periódico Carta Internacional, da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), e Social Governance of the 2030 Agenda and the SDGs in Brazil, capítulo do livro SDGs in the Americas and Caribbean Region da Universidade Haw Hamburg, da Alemanha, apresentam um panorama da adoção dos ODS no caso brasileiro. Abaixo, apresentamos alguns pontos principais destes estudos que lançam luz sobre o processo de governança, complexa e fragmentada, e de implementação dos ODS no Brasil, que têm como protagonistas a sociedade civil e governos subnacionais.
O Brasil possui um histórico de proeminência nas agendas internacionais de desenvolvimento e meio ambiente desde a Conferência de Estocolmo em 1972, passando por ter sediado as Conferências Rio-92 e Rio+20 (em 2012), e obteve resultados positivos na governança e no alcance dos ODM. Esta tradição esteve presente nas negociações da Agenda 2030 com intensa participação brasileira, tanto de atores estatais, como não-estatais, que teve como fruto, por exemplo, a adoção de um ODS sobre diminuição das desigualdades (ODS 10), entre outros.
Todavia, a expectativa de uma liderança brasileira na nova agenda de desenvolvimento sustentável não foi realizada. As múltiplas crises econômicas, sociais e políticas, ocorridas no Brasil, principalmente a partir de 2014, levaram o país a uma adoção descoordenada da Agenda 2030 em nível nacional. Apesar da implementação de uma governança dos ODS por meio da Comissão Nacional dos ODS (CNODS), em 2016, fruto de muita pressão da sociedade civil, e suas ações coerentes com as premissas da Agenda 2030, como o alinhamento entre o PPA e os ODS e a adequação das metas e indicadores globais à realidade nacional, não houve no país a liderança política e o devido incentivo para o engajamento social a partir de valores e identidades compartilhados para ativar o caráter transformador dos ODS.
A chegada ao poder de um governo de extrema direita, avesso a pautas de sustentabilidade e direitos humanos, levou o país a uma situação sui generis em relação aos ODS, em que o governo não rompe formalmente com o compromisso internacional, mas tampouco adota ações para a implementação dos ODS. Pelo contrário, grande parte de suas políticas representaram retrocessos em relação à Agenda 2030, processo que denominamos de virtual abandono da Agenda 2030.
Neste ambiente, de implementação errática da Agenda 2030 em nível federal, as experiências de diversos atores representaram o que chamamos de uma governança social dos ODS fragmentada e complexa. Em que a sociedade civil, representada tanto por organizações sociais, quanto por academia e setor privado, governos de estados e municípios, e setores do Legislativo, Judiciário, além de áreas isoladas do Executivo Federal, adotaram a Agenda 2030 e os ODS como forma de orientar suas estratégias rumo a um desenvolvimento mais sustentável, mas também como resistência ao governo federal, muitas vezes em contato direto com atores internacionais, principalmente por meio de redes transnacionais.
As ações da sociedade civil organizada foram fundamentais neste processo, principalmente por meio do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável (GTSC A2030), criado em 2014, e que reúne cerca de 60 organizações não-governamentais, sendo a principal rede nacional voltada para a promoção, a disseminação, a implementação e o monitoramento dos ODS. Dentre suas principais ações estão:
- (i) a construção de parceria com os setores público, atores não-estatais e internacionais;
- (ii) as ações de advocacy junto ao setor público, nos três poderes e nos três níveis de governo, para a construção de políticas e garantia de recursos;
- (iii) a produção de conteúdo, em particular os Relatórios Luz, principal instrumento de accountability e o mais completo instrumento de monitoramento e avaliação da Agenda 2030 em nível nacional.
Os governos subnacionais, por sua vez, adotaram os ODS de forma individual ou por meio de redes nacionais e transnacionais, como forma de:
- (i) promover o desenvolvimento sustentável, por meio de uma linguagem comum que permite o diálogo, interno e externo, entre governos e atores não-estatais;
- (ii) estabelecer parcerias domésticas e transnacionais;
- (iii) alinhar instrumentos de planejamento e políticas públicas;
- (iv) desenvolver ferramentas de monitoramento e avaliação;
- (v) promover a integração e coerência entre políticas. A apresentação de 10 Relatórios Voluntários Locais (Voluntary Local Review – VLR) destes entes demonstrou a vitalidade de suas iniciativas.
A adoção dos ODS no país foi caracterizada, por um lado, pela influência de fatores conjunturais, seguindo as mudanças de poder na Presidência da República, com maior participação e liderança no momento de construção da Agenda, entre 2012 e 2015, uma adoção limitada, incapaz de implementar a Agenda em seu potencial transformador (SDG washing), entre 2016 e 2018, e um grande retrocesso em relação às pautas de desenvolvimento sustentável com a ascensão de um governo de extrema direita, entre 2019 e 2022. Por outro lado, durante todo este período, houve uma atuação estrutural de atores políticos, de cooperação e/ou resistência de acordo com o período, principalmente da sociedade civil organizada e de governos subnacionais, com alguns focos de atuação nos poderes Legislativo e Judiciário, que utilizaram a Agenda 2030 como forma de manter a pauta do desenvolvimento sustentável em debate, evitar retrocessos ainda maiores e para responsabilizar e expor o governo central internacionalmente por sua atuação contrária aos ODS.
Entramos definitivamente no momento de pensar a chamada Agenda Pós-2030 e refletir sobre questões futuras relacionadas à atuação deste governo e dos próximos em relação à urgência e adotar medidas emergenciais para fortalecer a resiliência de pessoas, comunidades e regiões perante os desafios climático-ambientais. Ao mesmo tempo, para o Brasil, quaisquer respostas no campo da sustentabilidade necessitam estar aliadas ao fortalecimento das bases da nossa democracia. Um ambiente de intensa polarização política e fragmentação do tecido social exige de governos, instituições, setores empresariais e da sociedade civil organizada uma resposta coordenada, que seja ao mesmo tempo global e local, na construção da almejada transformação rumo a um desenvolvimento sustentável e continuado após 2030.
***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Petróleo: dimensão central da transição energética“, de Adilson Oliveira.