Na foto, o pesquisador Marcos Raposo

A Covid-19 trouxe o cientista para mais perto de nossa vida cotidiana. Biólogos, médicos infectologistas e divulgadores da ciência, geralmente ligados às universidades públicas e aos institutos de pesquisa, têm feito um intenso trabalho de informação, trazendo para o grande público, de maneira didática, temas complexos ligados à evolução da pandemia e às técnicas de prevenção do contágio. Projeções, gráficos e análises estatísticas são agora rotineiros na vida do cidadão que tem acesso à televisão ou às redes sociais.

Embora isso seja bom, a complexidade da crise sanitária, associada ao medo do seu impacto sobre a economia brasileira, provocou, como efeito colateral, uma explosão de narrativas negacionistas. Estas apareceram no formato de uma imensa estrutura de boatos e fake news que nega a periculosidade da pandemia e já foi responsável, indiretamente, pela morte de muitos brasileiros. Mal os cientistas elucidam um boato criado e disseminado sobre a doença, duas novas confusões de entendimento são criadas e espalhadas via redes sociais, em um formato que lembra a grotesca figura mitológica da Hidra de Lerna, cujas cabeças se regeneravam ou mesmo se multiplicavam ao serem cortadas.

Aqui, nós usamos um pouco de filosofia para desatar esses nós de entendimento, cortando três de suas principais cabeças, a da hidroxicloroquina, a da ivermectina e a do empoderamento do empírico. Esses três temas são fortemente associados entre si e à deficiência na formação científica de uma parcela de nossos cidadãos, inclusive médicos. Ao desfazer tais imbróglios, talvez os mais sérios no que concerne à pandemia, desvela-se também uma clara noção do conceito moderno de ciência.

Embora o negacionismo seja muito mais complexo e profundo do que uma frase possa alcançar, a primeira oferecida pelo Wikipédia em sua definição (“é a escolha de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável”) é bastante didática na hora de entendermos sua relação com a Covid-19 no Brasil. Essa negação da realidade se deu imediatamente quando se atentou para o tamanho da crise econômica que estava por vir.

Nesse sentido, a primeira informação falsa disseminada no Brasil sobre a doença, ou seja, a primeira das cabeças dessa hidra negacionista, foi a tentativa de qualificar a doença como uma gripezinha ou um mero resfriado. Essa cabeça foi rapidamente cortada por cientistas e, infelizmente, pelas dezenas de milhares de mortes que se seguiram (hoje, cerca de 100 mil).

Mas dela, duas novas cabeças se originaram: uma espalhava que o coronavírus só atacaria idosos; e outra tranquilizava o público alegando a existência de medicamentos que a tornariam uma ameaça menor, facilmente debelada. Essas duas cabeças foram, igualmente, destruídas pelas evidências. Em relação à primeira, cientistas mostraram que as infecções atacavam outras camadas etárias da população, além, é claro, de ressaltarem que a desvalorização da vida de idosos era vergonhosa demais para continuar sendo usada como argumento na discussão. Em relação à segunda, ela caiu em descrédito pelo alto número de vítimas fatais mundo afora e estudos científicos que demonstraram que não havia ainda remédios que garantissem a vida de pacientes frente à doença.

Obviamente, dessas duas cabeças decepadas nasceram outras quatro e assim por diante, em uma estratégia que não funcionaria se a ciência, como um todo, não fosse colocada em descrédito. Isso foi feito via um verdadeiro bombardeio de ataques a, virtualmente, todo o tipo de especialista na área, o que não foi uma exclusividade brasileira. Nos EUA, hoje, o grande inimigo eleito por negacionistas é a principal referência no assunto, o infectologista Anthony Fauci, antes à frente da força-tarefa da Casa Branca e agora afastado pelo presidente. Aqui no Brasil, os dois ministros que achavam que suas equipes de cientistas sabiam mais sobre a sua especialidade que o presidente da república foram, igualmente, afastados e difamados.

Seguiu-se, então, o surgimento de novas cabeças da hidra: a ivermectina, a própria hidroxicloroquina, uma versão negacionista e genocida do efeito de manada, o boato sobre a suposta ineficiência do isolamento social onde este foi adotado, a crença de que as projeções de mortes feitas por cientistas estão erradas quando não se concretizam, o macabro plano de volta às aulas presenciais, e o empoderamento de um novo tipo de porta-voz da ciência, só que sem ciência – o empírico.

Nesse sentido, a distinção entre um cientista e um empírico é central no entendimento da mecânica do movimento negacionista brasileiro e, especialmente, no seu combate.

Dados empíricos são aqueles extraídos da observação do mundo. Aristóteles (385-323 AC) e John Locke (1632-1704), curiosamente conhecido como o pai do Liberalismo, estão entre os empíricos mais famosos. A alcunha de empírico é, geralmente, dada a estudiosos que têm referenciais similares aos daquela época, ou seja, que usam sua experiência pessoal e intuição para chegar a suas conclusões sobre o significado dos dados empíricos. Mas, desde Auguste Comte (1798-1857), fundador do Positivismo, uma espécie de evolução do empirismo, a verificação rigorosa e a repetibilidade das experiências empíricas passaram a ser muito valorizadas. O cientista, então, estabelece protocolos precisos para que seus dados e conclusões sejam verificáveis.

Já no século XX, o filósofo Karl Popper introduziu a noção de falseabilidade na ciência, ou seja, apesar de, frequentemente, termos a verdade nas mãos, um cientista não pode pressupor que a saiba, sob pena de paralisar a investigação científica. Nosso conhecimento deve ser sempre considerado falível. Os experimentos controlados servem, justamente, para a constante verificação de hipóteses, o que confere a essas a sua robustez científica.

A hidroxicloroquina, um medicamento há muito conhecido e eficiente para outros males, foi considerada eficaz no tratamento da Covid-19 em um grupo de doentes franceses, mas a pequena amostragem do estudo deixou a robustez dos seus resultados baixa. Estudos posteriores não corroboraram esses resultados. Nesse caso, a hipótese era científica, por ser falseável, mas fraca, por ter pouca robustez. E foi, além disso, refutada pelos últimos estudos feitos. Seu uso no tratamento da Covid-19 deixou de ser recomendado pelas principais organizações do mundo, inclusive, nos EUA. Mas é importante que fique claro que a própria refutação poderá ser questionada no futuro, caso outros estudos demonstrem sua eficiência.

No caso da ivermectina, um medicamento para vermes que ganhou a fama de prevenir o contágio pelo novo coronavírus, estudos muito preliminares mostraram que ela reduziu a replicação viral em laboratório. A hipótese produzida diz respeito então, por enquanto, a seu uso in vitro, não no organismo humano. Assim, embora estudos futuros possam chegar a dosagens seguras para pessoas e que sejam efetivas contra o vírus, hoje, tais hipóteses sequer existem formalmente, o que torna as inferências sobre o seu uso não científicas.

Qualquer um que se interesse sobre o assunto, entretanto, já viu médicos exaltando as qualidades curativas e preventivas de tais remédios, receitando e mesmo os ministrando. Há vídeos com relatos até muito convincentes vindos de médicos doutores sobre coquetéis contra a Covid. Dentre os mais famosos, o da médica Lucy Kerr e o do prefeito de Porto Feliz, o médico Cassio Prado. Esses médicos estavam, por diferentes circunstâncias, coordenando equipes na linha de frente da batalha contra a doença.

Ambos os relatos são muito convincentes quanto à recuperação dos pacientes. No caso do prefeito de Porto Feliz, o relato inclui uma atenção incomum com a população, desde o isolamento social, uso de máscaras, introdução da ivermectina em um nível preventivo e um coquetel de medicamentos, que incluía a hidroxicloroquina, para cada doente. No vídeo foi, inclusive, chamada a atenção para a necessidade de testar e tratar pacientes tão cedo surgissem os primeiros sintomas e não somente quando o doente já estivesse com problemas ao respirar, como recomendado na época por algumas autoridades (com o intuito de não sobrecarregar hospitais).

Ambos tiveram grande sucesso na cura de pacientes, mas, claramente, não definiram metodologias que tornassem seus resultados e conclusões científicos. Considerando-se que uma em cada 200 pessoas vem a óbito após ter contato com o vírus, que se cuidou dos pacientes desde antes do contágio ou nos estágios muito iniciais da doença (ao menos no caso de Porto Feliz), considerando-se que outros remédios foram ministrados simultaneamente e que não houve grupo de controle, é absolutamente impossível afirmar qual fator foi, dentre todos, determinante na recuperação de pacientes. Embora seja fácil entender o entusiasmo dos médicos, atribuir seu sucesso à hidroxicloroquina seria bastante precipitado.

O mesmo pode ser dito no caso do uso da ivermectina em Porto Feliz. Lá, o prefeito informa que ninguém que tomou esse remédio contraiu o vírus, mas, da mesma forma, sem um grupo de controle, não se pode saber se tais resultados não têm outra explicação, como por exemplo, o uso de máscaras, o isolamento social, o pequeno número de casos na cidade, o envolvimento das “cobaias” com profissionais da área, preparando-os adequadamente para se prevenir do contágio etc.

Essa é a diferença essencial entre afirmações não científicas baseadas em dados empíricos e afirmações científicas, que poderiam ter sido baseadas nos mesmos dados, claro, acrescidas de grupos de controle e alguns outros cuidados que permitissem testar a consistência das conclusões. Em ambos os casos, convencidos por sua intuição, baseada nas impressões e experiências trazidas do fronte (não controladas), e respaldados tão somente por sua autoridade de médicos, os dois vieram a público dar seu depoimento.

Esse tipo de conhecimento empírico não testado não é considerado científico há cerca de 200 anos, justamente porque não é levantado com os cuidados necessários, que confeririam confiabilidade aos dados.

Claro, diante da pressão imposta pela doença, qualquer um tem o direito de desejar tratar ou ser tratado com medicamentos que tenham tido aparente sucesso na recuperação de outros doentes. Cientistas são, em sua maioria, empáticos ao uso de medicamentos não apropriadamente testados nessas condições, especialmente quando já são bem conhecidos no que concerne a efeitos colaterais. Por sinal, ambos os medicamentos referidos acima estão sendo usados em larga escala.

Mas isso está muito distante de alardear que se encontrou a cura para a Covid-19 e alegar, como argumento, que o pesquisador tem doutorado ou que lidera grupo de pesquisa. Se tais resultados fossem científicos e robustos, já existiriam artigos disponíveis ou manuscritos, com metodologia etc. Muito pelo contrário, houve refutações.

Sendo assim, a chancela da ciência não deve ser inapropriadamente conferida a esses medicamentos, entre outros, para que a população se sinta segura – sem, de fato, estar.

Para quem trabalha no mato, como eu e muitos agricultores e pecuaristas, ir para campo com uma perneira que seja ineficiente contra picada de cobra tem o mesmo efeito. Você se sente seguro, coloca o pé em qualquer canto e acaba em um hospital tomando soro antiofídico, esse sim, testado e verificado.

Por outro lado, a disseminação de curandeirismos com vestes de ciência por autoridades da área política e médica faz com que recursos pessoais e públicos sejam gastos sem nenhuma evidência qualificada. Tais crenças e boatos são também usados por negacionistas para dar prosseguimento às suas agendas pessoais, nas quais a saúde pública fica no final da fila de prioridades (para se ter uma noção mais específica do uso do negacionismo em agendas pessoais, veja o vídeo de Gabriela Prioli em https://www.youtube.com/watch?v=MNmkgfEmpBA&feature=share).

É importante reafirmar, entretanto, que o fato de algo não ser científico não implica em dizer que não seja verdadeiro. A humanidade como um todo chegou ao ponto de valorizar a ciência acima das demais estruturas de saber dada a sua eficiência, aceitação e permeabilidade em diferentes culturas e tradições. Mas ela, a ciência, não nega outras estruturas de saber. Então, hoje, dificilmente você vai ouvir cientistas dizendo que a ivermectina e a hidroxicloroquina jamais funcionarão em qualquer etapa do tratamento. Apenas ouvirá cientistas dizendo que seu uso contra o coronavírus no ser humano não é cientificamente respaldado.

Em tempos de crise é que temos a oportunidade de, verdadeiramente, conhecer pessoas e sociedades. O medo faz com que recorramos àqueles que fazem as promessas mais atraentes e fáceis. Nesse momento, ficamos susceptíveis a curandeirismos e a todo o tipo de salvadores, esquecendo, de fato, o que sabemos e quem somos.

A adoção, pelo Estado, do empírico como alternativa à ciência deve ser repudiada com toda a força pela sociedade. Assim como ocorreu no confronto mitológico entre Hércules e a Hidra de Lerna, nossa hidra negacionista, que está mais viva que nunca, somente será verdadeiramente destruída quando, além de cortarmos todas as suas cabeças, queimarmos as feridas de modo que essas não se regenerem nem se multipliquem. Isso só pode ser feito por meio de muita informação, debate e inclusão científica. A parte que cabe a cientistas e difusores da ciência é, além de persistir fazendo seu trabalho, oferecer ao público soluções tão atraentes e simples de serem compreendidas quanto o são as fake news e os pseudodilemas que negacionistas empurram diariamente para as redes sociais. Talvez essa seja uma vacina tão importante quanto a que é hoje buscada em laboratórios do mundo todo.