Se anda como um imperador, gesticula como um imperador, fala como um imperador, então é que insiste em ser um imperador.

I
O recém iniciado segundo mandato de Donald Trump inaugura o capitalismo sem necessidade de máscara, com a brutalidade exposta pelas luzes do esplendor hollywoodiano. Para quê bons modos ou fingida polidez se não há mais obstáculos à altura desse ímpeto desbordante? Para quê essa pretendida boa aparência se, além disso, foi ungido pelas sacrossantas urnas da democracia representativa? E se o poder, o poder sem freios, se estende para além do horizonte visível? Todas as travas foram retiradas e o Estado está agora despido de suas fantasias, ele é e deve ser fundamentalmente um instrumento para uso do capital, seja qual for a lógica (ou a ilogicidade) que o conduz, e não o promotor do bem-estar social. Não são poucos os analistas dizendo que as travas do primeiro mandato evaporaram no início desse segundo – “As grades de proteção que o restringiram da última vez não existem mais”, escreveu Paul Krugman na sua penúltima coluna para o NYT, em 2 de novembro passado, antes, portanto, da vitória do empresário. A sensibilidade do economista não é paranoica, nem ele é uma voz solitária bradando no deserto do Arizona.
II
É assim que abril de 2025 entrará para a história como o mês em que uma turba de bilionários capitaneados pelo menos aparentemente pelo milionário que manda na pátria do capitalismo moderno (ou quem sabe… pós-moderno) decidiu empreender o maior ataque à ordem capitalista mundial. Sejam quais forem as consequências desse empreendimento, não tenham dúvidas de que quem pagará o pato serão, antes que todos, os despossuídos. Abril de 2025, portanto, será lembrado como o mês em que o mundo do capital foi literalmente virado pelo avesso para que o Império siga comandando o espetáculo. É o que se deduz de uma rápida passada de olhos nas manchetes dos jornais, de todos os jornais, de todas as tendências (não que haja diferenças fundamentais entre eles, diga-se de passagem). Ou da leitura de apenas um dos mais representativos porta-vozes do grande capital, o Financial Times no editorial da sexta-feira, 4 de abril (Trump’s destruction of global alliances). Mas daí você se pergunta: existe milionário doido, capaz de pôr de ponta-cabeça a máquina de ganhar dinheiro em grande escala? Não há muitas dúvidas de que os empresários (e os donos de grandes fortunas) são seres com alguma saúde mental apenas se se considera a lógica do capital e a necessidade imparável de lucros, lucros permanentemente maiores, custe o que custar. São razoáveis, portanto, se considerada tão somente a racionalidade capitalista. Para além dela, qualquer diagnóstico de demência não estará muito distante da verdade – basta ver as consequências dessa incontrolável carência para a saúde do planeta, ou olhar para a história e verificar a responsabilidade dessa gente nas guerras que devastaram o mundo no século XX e nas vultosas calamidades de toda ordem. Mas quando um amontoado importante de capitalistas encastelados no poder rompe a própria racionalidade capitalista, o mundo roça as bordas do pânico.
III
Elon Musk (não há como desconectá-lo da figura de Trump, por mais paradoxal que possa parecer nesse momento), idolatrado planeta afora por um sem número de apaixonados fiéis, alarga os limites da brutalidade inata do sistema e as fronteiras do despudor porque parece ter plena consciência da desnecessidade das normas da decência – isso, a decência, não faz parte do funcionamento das coisas, o que finalmente pode ser dito com todas as letras. Descortina a natureza do maquinismo sob o qual nos reproduzimos como espécie. O titã da riqueza mundial privada é um anão moral, tanto quanto a própria máquina que o pariu. Talvez o mais típico dentre os de sua estirpe. Quanto mais se afasta das sombras de decência que porventura existiam, maior o tamanho da sua própria realização pessoal. Ela, a decência, é seu antagonista por excelência. Para que ele e os de sua raça sobrevivam e prosperem, ela precisa ser exterminada, como se jamais tivesse existido. Junto com ela, também os indecorosos pruridos de seus supostos adversários políticos estão sendo jogados na lata de lixo. O velho regime (talvez já possamos chamar assim) está sendo dispensado como se dispensa um cômico que perdeu a graça, uma engrenagem inútil ou as porosidades numa azeitada linha de produção. Quando as máscaras e os disfarces são deixados para trás, surge a face perversa dos animais gregários, aqueles que se movem e se reproduzem unicamente em bandos, geralmente incapazes de conviver com os que não fazem parte da alcateia. E em bandos é que aspiram ao gozo total do titã, mesmo que não possam, nem um, nem outros, aspirar ao sublime – que na verdade não lhes interessa. A todos eles interessa o gozo simples, o urro selvagem dos animais ferozes quando capturam sua presa. Mas há um agravante: essas alcateias recém-surgidas estão assumindo o comando e têm dimensões planetárias.
IV
O que eventualmente pode parecer sofisticado é de um primarismo quase infantil. O que faz o grandalhão da turma quando se dá conta de que está perdendo o jogo? Sabemos desde o início da puberdade, pelo menos: apela, pega a bola e sai do campo, esperneia contra os árbitros (juiz, bandeirinhas, auxiliares de campo, presidente da federação… sempre quando não intercedem a seu favor), pisoteia e joga para o espaço as regras que ele próprio ditou. Faz, enfim, o que for preciso para retroagir ao momento anterior, no qual era ainda o imbatível mandachuva. Na opinião do citado editorial do Financial Times, a operação não tem como não dar com os burros n’água. As medidas não apenas prejudicarão a economia americana, como também desestabilizarão alianças internacionais e a ordem econômica global. Mas não é esse o ponto. São adultos, ou pelo menos têm idade mais que suficiente para ser, e eles que se entendam. Aqui interessa mais a desmedida arrogância expressa pelas decisões tomadas que seus resultados práticos. Porque nela se encontram sintomas de uma tragédia que vai muito além dos muros da economia.
V
‘Por favor, por favor, senhor, faça um acordo. Farei qualquer coisa, senhor’”, discursou, imitando um líder estrangeiro suplicante (“They are dying to make a deal. ‘Please, please sir, make a deal. I’ll do anything sir,’” he imitated a begging foreign leader”.) O quê mais falas como esta pode representar senão o nível de degradação a que se chegou na política internacional e entre seus mais notórios protagonistas – o imperador mais que todos os outros. A política, no entanto, não flutua acima da sociedade como um corpo alheio e blindado, ainda que às vezes assim o pareça. O rebaixamento trumpiano (ou bolsonarista, com a devida vênia ao estadunidense) da política é uma pintura em grande escala do aviltamento da vida social na Terra nos tempos mais recentes. Dadas as circunstâncias atuais, não será difícil adivinhar o autor da refinada oratória. Sim, isso mesmo. A peça foi expelida pelo presidente estadunidense num jantar para o Comitê Nacional Republicano do Congresso em Washington e recebida por forçosos aplausos.
VI
Doidos, pessoas às vezes tão comuns quanto eu e você, existiram desde sempre, doidos do apocalipse et outros. Mais adiante, o fanatismo é quase sempre a cópia e a consequência da insanidade. O problema começa quando lhes dão corda e eles próprios se alimentam mutuamente na poça de suas crenças como se nada mais existisse para além delas. A loucura se torna coletiva e quase que imediatamente se transforma em energia e em política. Mas quando, além disso, encontram um temerário homem de negócios para guiá-los num assalto ao Capitólio (ou ao Palácio do Planalto), a coisa tende a desandar. Todas as vezes na história em que esses grandes chefes apareceram com disposição messiânica para comandar a loucura e as frustrações alheias, alimentando seus mais regurgitados rancores, o resultado foi de fato apocalíptico. Será preciso lembrar?
V
Por isso é legítimo perguntar-nos se as (des)medidas tomadas pelo imperador são resultado de alguma lógica misteriosa à qual ninguém ou quase ninguém tem acesso ou da demencial arrogância de seres descontroladamente ególatras – sem descartar que sejam ambas as origens.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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