“Desde a invasão israelense de 1967, a vida (na Cisjordânia e em Gaza) consistia numa rotina avassaladora de restrições, expropriação de terras, construção de assentamentos, maus-tratos diários e diversas formas de castigo coletivo.” (do prefácio à edição brasileira de A Pena e a Espada – Diálogos com Edward W. Said)

I

Enquanto o Imperador encena seu espetáculo burlesco para exibir músculos e a imprescindível virilidade imperial, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu aproveita para intensificar (sic) sua política genocida na Faixa de Gaza. Quem afinal poderia se interessar em mais uma ou duas centenas de miseráveis trucidados por bombas e tanques, enquanto o show de Trump é implacavelmente transmitido e retransmitido pela máquina de propaganda do mundo próspero? A adesão é imediata, não importa a grandiosidade das patetices protagonizadas por Trump. Plantado à frente de sua rede de comunicação favorita ou grudado às sequências intermináveis de tuites, o grande público deglute deliciado o que os donos do poder desejam lhe fazer engolir – como se fosse apenas um costume a mais, um simples hábito, mais uma das incontáveis necessidades criadas pelo universo da mercadoria. Camadas de cretinização se sobrepõem umas às outras sem que se consiga distinguir muito bem ordens de prioridade ou de grandeza.

II

Nas primeiras horas da manhã de 18 de março último, rompendo unilateralmente o armistício iniciado menos de dois meses antes, em 19 de janeiro, Israel iniciou um novo ataque aéreo contra Gaza. Batizada de Operação Força e Espada, a ação resultou na morte de mais de 400 palestinos, “incluindo um número significativo de mulheres e crianças”. Em 9 de abril, menos de três semanas depois, outro bombardeio destruiu um edifício residencial em Shuja’iyya matando pelo menos três dezenas de civis e ferindo mais 70. Na sequência, uma série continuada de quase 700 incursões aéreas iniciadas em 19 de maio deixou um novo amontoado de cadáveres, com mais de quatrocentas vítimas. Na segunda-feira, 26 de maio, o bombardeio da Escola Fahmi al-Jarjawi matou 36 pessoas, entre as quais 18 crianças e 6 mulheres, e deixou mais meia centena de feridos. A investida foi acompanhada de uma proclamação de Benjamin Netanyahu anunciando uma “ofensiva sem precedentes” e a mobilização de 450.000 reservistas, além de evacuações massivas no sul do território palestino. Dois dias depois, na quarta-feira da semana que se encerra agora, Israel e EUA decretaram o início de um cessar-fogo de 60 dias. Enquanto isso, segundo a Organização Internacional para as Migrações da ONU, mais de 600.000 palestinos residentes em Gaza foram obrigados a se deslocar no interior da Faixa desde a ruptura do armistício, em meados de março, e em “apenas 10 dias, entre 15 e 25 de maio, quase 180.000 pessoas foram forçadas a deixar suas casas ou abrigos”. Calcula-se que 90%da população de Gaza (cerca de 1,9 milhão de pessoas, sendo mais da metade, crianças) esteja atualmente fora de suas casas, em permanente deslocamento. A estimativa de vítimas fatais na Faixa de Gaza desde o início da invasão é de 54.000 – um estudo publicado pela The Lancet em janeiro de 2025 estima, porém, que até outubro do ano passado, “o número de mortes por ferimentos traumáticos” em Gaza já teria ultrapassado os 70.000, “sendo 59,1%… mulheres, crianças e idosos”.

III

Até março de 1944, havia na Hungria uma população de quase um milhão de judeus. Uma peculiar relação do governo húngaro, aliado dos nazistas, com a população judia a manteve à margem do programa de extermínio levado a cabo por Eichmann e sua equipe. Era circunstancial, é claro. A relativa autonomia dos húngaros foi definitivamente enterrada quando, em março de 1944, Hitler ordenou a ocupação militar do país. A partir dali, sem a precária proteção do governo húngaro, o último dos grandes grupos de judeus europeus iniciou uma marcha forçada na direção das câmaras de gás de Auschwitz. Em pouco menos de 60 dias, entre maio e junho, mais de metade dos judeus húngaros (437.000) foram enfiados em vagões de trem e levados para a morte – o gazeamento seguiu até os derradeiros minutos de funcionamento do campo, em novembro de 1944, uma data na qual a Alemanha, embora ainda sem se render, já havia há muito perdido a guerra – não são poucos os que consideram que o turning point tenha acontecido com a derrota dos nazistas em Stalingrado, no começo de 1943. (A anotação dessas datas é apenas para enfatizar o absurdo despropósito da missão a que se propuseram os hitleristas. Se há um fato histórico que o assinala da forma a mais emblemática possível é o do extermínio dos judeus húngaros.)

IV

À diferença da solução final que inspirava os alemães, Netanyahu e os seus parecem ser guiados por propósitos de natureza mais mundana – a liquidação étnica e a diáspora forçada que estão impondo aos palestinos da Faixa de Gaza nada ou quase nada têm de simbólicas e são, ao contrário, mediadas por interesses econômicos muito palpáveis. Atualmente, as forças de Netanyahu ocupam em torno de 40% do território de Gaza. Comenta-se que o plano é ocupar (ser dono e senhor) de pelo menos 75% nos próximos meses. Em qual eventual futuro os israelenses devolverão aos palestinos as áreas agora ocupadas? Levando-se em conta o histórico das ocupações anteriores, isso ficará para as calendas… No caso das ações militares e ocupações de territórios pelo Estado judeu, elas quase sempre significaram expropriação de terras – ou não é este o propósito dos colonos israelenses e do Estado que os protege? Para eles, a Palestina é determinação divina, provisão destinada ao povo hebreu. Qualquer existência para além dessa predestinação é fantasmagórica, parte de um universo paralelo que para eles não comporta o estatuto de realidade nem, portanto, qualquer tipo de reconhecimento. É um nada que pode ser riscado dos mapas.

V

Há nisso algum paralelismo com o show de Donald Trump. Afinal, em qual mundo vive um sujeito que, se autoproclamando mestre e senhor do planeta, anuncia como solução para o fim da invasão da Faixa de Gaza sua transformação em uma Riviera do Oriente Médio? Segundo o que noticiaram os jornais no começo de fevereiro, o plano “incluía a remoção de aproximadamente dois milhões de palestinos” (i.e., toda a população da Faixa) “para países vizinhos como o Egito e a Jordânia, e a reconstrução da área com investimentos internacionais”. Apenas três meses depois, numa aparente tentativa de tornar menos risível sua ideia original, fez dela algo ainda mais vago e intangível, sugerindo transformar Gaza em “uma zona de liberdade”, com a participação dos Estados Unidos “na reconstrução e administração do território”. Sabe-se lá o que isso significa e o que está planejando agora. Tentando se distanciar das trapalhadas, seus mais fiéis aliados e outros atores da cena política internacional atropelam dia após dia seus arroubos de prepotência – Netanyahu aproveita a brecha (o manto que desvia as atenções na direção dos holofotes) para incrementar a ultraviolência da guerra contra Gaza e os palestinos e Putin redobra sua ofensiva para forçar o pacto de paz que os europeus relutam em assinar. Parece ser esse o estado das coisas ou ao menos o que nos está sendo mostrado. Do outro lado da tela, o público aguarda expectante a encenação do próximo ato.

VI

Quinta-feira, 29 de maio. O governo de Netanyahu acaba de anunciar a aprovação da “construção de 22 novos assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada”. Segundo a própria mídia israelense “é uma das maiores anexações de território palestino em décadas”.

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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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