A nova política industrial para o país se alinha às práticas dos países centrais e é inovadora
No dia 22 de janeiro de 2024, o governo federal anunciou sua nova política industrial (políticas voltadas a transformar a estrutura econômica, na busca de algum objetivo público) – o programa Nova Indústria Brasil, visando impulsionar diversas áreas do setor industrial brasileiro através do estabelecimento de diversas missões a serem empreendidas. De modo geral, as atividades econômicas vinculadas ao setor, em contraposição às atividades agrícolas, minerais e à maior parte dos serviços, apresentam uma série de atributos positivos, o que as tornam motivo de atenção de governos mundo afora.
Da perspectiva social, é no setor industrial que a média salarial é mais alta e a estabilidade empregatícia é maior, elevando o bem-estar da população. Para a dinâmica econômica de um país, a relevância da indústria se apresenta através de vínculos produtivos intensos com atividades de outros setores, transformando insumos agrícolas e minerais em produtos alimentícios, bens de consumo e de capital. A partir dessas imbricações produtivas, e por possuírem um acúmulo relevante de conhecimento abarcado nos seus processos produtivos, as atividades industriais tendem a apresentar maior capacidade inovativa, fundamental dinamizador econômico. A essas características, se somam fatores conjunturais, de ordem internacional e nacional, que justificam a iniciativa anunciada pelo governo brasileiro.
Na dimensão internacional, as potências mundiais (EUA com os Inflation Reduction Act e o Creating Helpful Incentives to Produce Semiconductors and Science – CHIPS act, China e o Belt and Road Initiative e União Europeia com o plano European Green Deal) têm empreendido diversos planos para dinamizar suas indústrias, buscando maiores entregas aos anseios de renda, emprego e bem-estar de suas populações, bem como posicionamentos de liderança na geopolítica global. Há um entendimento por partes dos governos mundo afora de que o alcance de determinados objetivos (em atividades industriais sensíveis, tais como o automotivo, de energia ou de semicondutores) não ocorrerá a partir da atuação individual do setor privado.
Uma grave crise sanitária desencadeada pelo coronavírus a partir de 2020, guerras como o conflito entre Rússia e Ucrânia e os recentes múltiplos focos de tensões no Oriente Médio, suscitam preocupações sobre possíveis interrupções nos fluxos de comércio internacional, fomentando iniciativas de internalização das capacidades produtivas de bens essenciais.
No que tange a questões internas brasileiras, a desindustrialização precoce experimentada pelo país (a indústria de transformação, que já respondeu por 35,88% do PIB em 1985, em 2022 representou 12,87% da produção e aproximadamente 20% do emprego formalizado) justifica propostas de políticas para o setor. Essa dinâmica industrial decadente implica na baixa produtividade da economia brasileira, em empregos mal remunerados e numa economia mais frágil e suscetível a instabilidades econômicas frequentes.
Tomando como comparativo a China, economia que registra consistentes taxas de crescimento econômico há décadas, a participação da indústria no valor adicionado foi de 38,3% em 2023 e 28,8% da mão de obra do país se encontrou no setor, patamares bem mais elevados do que na economia brasileira. Não há registro histórico de país que se desenvolveu na ausência de uma indústria nacional forte.
Somando-se à realidade dos fatos, parte da literatura acadêmica recente que trata de políticas industriais tem levantado fundamentos teóricos para essas ações, necessidades globais que as justificam e evidências empíricas acerca de seus bons resultados. Mariana Mazzucato, economista de destaque no debate contemporâneo sobre políticas públicas, argumenta que os grandes desafios do nosso tempo, tais como a necessidade da transição verde, a redução da desigualdade e a criação de capacidades produtivas nacionais para combater crises sanitárias, devem se traduzir no estabelecimento de missões sociais, expressão que confere o caráter de urgência destes desafios bem como a necessidade de um planejamento adequado para as ações empreendidas, a serem executadas de forma coordenada entre academia, empresas e governo.
Dani Rodrik (professor de Harvard e estudioso do tema) e colegas, em recente trabalho (The new economics of industrial policy), elencam diferentes falhas de mercado que justificam a adoção de políticas industriais por parte dos governos, bem como apresentam diversos estudos que apontam para resultados positivos dessas iniciativas mundo afora.
Economistas do próprio Fundo Monetário Internacional, insuspeitos de qualquer orientação socialista, em artigo publicado em 2016 (Neoliberalism: oversold?), alegam que a adoção de duas típicas políticas neoliberais, tais como a movimentação especulativa de capital internacional e políticas de consolidação (austeridade) fiscal, impactam negativamente a desigualdade econômica e, em consequência, o crescimento econômico dos países. Há, portanto, inclusive nas produções de organismos que sempre tiveram fé nos benefícios do livre-mercado, o entendimento de que a complexidade do atual momento demanda ações coordenadas entre governos e iniciativa privada, onde a ideia de interesse nacional tem cada vez mais centralidade.
É neste contexto, em que os fatos objetivos do mundo real crescentemente se impõem frente à crença no neoliberalismo (ainda muito forte em terras brasileiras), que o governo Lula III lança o Nova Indústria Brasil, apresentando seis missões a serem atingidas no período 2024 – 2033:
– Cadeias agroindustriais: aumentar para 50% a participação da agroindústria no PIB agropecuário brasileiro; alcançar 70% de mecanização na agricultura familiar, fornecendo ao menos 95% de máquinas e equipamentos de origem nacional para a agricultura familiar.
– Saúde: atingir 70% das necessidades nacionais na produção de medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, materiais e outros insumos e tecnologias em saúde.
– Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade: diminuir em 20% o tempo de deslocamento da casa ao trabalho; aumentar em 25% o adensamento produtivo na cadeia de transporte público sustentável.
– Transformação digital da indústria: digitalizar 90% das indústrias brasileiras; triplicar a participação da produção nacional no segmento de novas tecnologias.
– Bioeconomia, descarbonização e transição energética: cortar em 30% a emissão de gás carbônico por valor adicionado do PIB industrial; elevar em 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes; aumentar o uso tecnológico e sustentável da biodiversidade pela indústria em 1% ao ano.
– Soberania e defesa nacionais: elevar a autonomia de produção de tecnologias críticas para defesa nacional a 50%.
Até 2026, prevê-se a destinação de R$ 300 bilhões para as ações do programa, tendo o BNDES, a Finep e a Embrapii como as principais instituições financiadoras. Os mecanismos utilizados são diversos, como empréstimos com taxas reduzidas, subvenções, investimentos públicos, mudanças regulatórias, compras públicas, requisitos de conteúdo local, dentre outros.
Estas frentes de ação possuem atributos importantes. O país possui evidentes vantagens comparativas associadas aos seus recursos naturais, agrícolas e minerais. Apostar na dinamização industrial a partir da diversificação das cadeias agroindustriais, na bioeconomia e na transição energética é, portanto, uma escolha estrategicamente acertada, dadas as dotações naturais do país. A vinculação de medidas que atendam aos anseios dos trabalhadores de médias e grandes cidades que passam tempo demasiado se deslocando de casa ao trabalho com a dinamização da indústria automotiva “verde” nacional é fundamental.
O desenvolvimento do complexo industrial brasileiro da saúde, setor relevante do ponto de vista econômico por causa de sua densidade produtiva e capacidade inovativa, atende também a critérios de segurança sanitária nacional, que deve ter capacidade interna de produção de medicamentos essenciais à saúde pública.
Após o anúncio do plano, diversas foram as manifestações de apoio vindas de entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), federações industriais de diversos Estados, como a FIESP e a FIRJAN, e associações de indústrias como a ABIMAQ, do setor de máquinas e equipamentos e a ABICALÇADOS, do setor calçadista. Entendem que melhores condições regulatórias e de crédito são fundamentais para a renovação e ampliação do parque industrial nacional.
No entanto, críticas contrárias não tardaram a aparecer. Já antes do anúncio oficial, comparações com as iniciativas de apoio às “campeãs nacionais”, argumentos contrários à participação pública excessiva na economia e, principalmente, à falta de espaço fiscal para a execução das medidas propostas, figuraram entre os pontos levantados. A essas críticas, para um país de dimensões continentais e grandes potenciais ainda inexplorados de desenvolvimento como é o caso do Brasil, impõe-se que a pergunta a ser feita não é se políticas industriais devem ser empreendidas, mas como empreendê-las de forma a conseguir os melhores resultados.
Neste sentido, é crucial nos debruçarmos sobre os erros e insuficiências que ocorreram nas experiências pregressas de políticas industriais, como no caso da Política Industrial Tecnológica e de Comércio Exterior (lançada em 2004), da Política de Desenvolvimento Produtivo (2008) e do Plano Brasil Maior (2011), políticas que não lograram colocar o país no caminho da mudança estrutural almejada.
Um aspecto fundamental para o sucesso do Nova Indústria Brasil é que suas iniciativas devem estar sintonizadas com as políticas macroeconômicas do país e que haja efetiva coordenação dos atores públicos e privados envolvidos, cujos papéis são diferentes, mas ambos indispensáveis para o alcance das metas estabelecidas.
Em relação à necessária sintonia entre política macroeconômica e as medidas propostas, caso a primeira seja de caráter demasiadamente contracionista (juros elevados e metas fiscais muito restritivas), ela pode jogar contra o aquecimento necessário da demanda privada, indispensável para a efetivação dos grandes projetos de mudança estrutural idealizados no Nova Indústria Brasil. O esperado salto qualitativo e quantitativo da estrutura industrial brasileira só acontecerá se os empresários entenderem que haverá demanda para seus investimentos, explicitando a centralidade da política monetária e fiscal para o sucesso do plano.
O Nova Indústria Brasil, apresentado em longo documento de mais de 100 páginas, envolve uma série de diferentes órgãos e instituições públicas que coordenam, planejam, executam e acompanham as atividades propostas, o que requer uma grande capacidade de coordenação institucional pública para o alcance das metas pretendidas (aspecto fundamental mas que ainda não foram anunciadas), de forma a não haver contradições entre os mecanismos adotados tampouco indefinições sobre as responsabilidades institucionais de cada órgão público envolvido.
As mudanças estruturais pretendidas requerem iniciativas de apoio industrial, alterações em múltiplos aspectos regulatórios, apoio e tratados de comércio exterior, dentre outras frentes de ação, as quais devem “conversar” entre si. Estabelecer uma hierarquia institucional adequada é fundamental para a coordenação dos vários grupos de trabalho e atores estatais envolvidos, tais como conselhos, diversos ministérios, autarquias e entidades privadas.
Outra condição essencial é a da coordenação entre o setor público e o setor privado. A mudança estrutural pretendida para a economia brasileira, com a escala e o tempo de execução que possui (para além de uma política de governo, o Plano Nova Indústria Brasil, com metas até 2033, é uma política de Estado), requer que o governo continuamente busque administrar as tensões que surgirão no ecossistema econômico, formado por atores com os mais diversos interesses e visões de mundo.
Muitas dessas políticas envolvem mudanças em direção a atividades e tecnologias sustentáveis e adaptação a novos requerimentos regulatórios, mudanças que envolvem perdas de espaço por parte de empresas e setores com grande poder político e eventuais aumentos de custos para determinadas atividades produtivas. Cabe ao poder público justificar continuamente as medidas tomadas, elucidando como se relacionam com os objetivos propostos e sugerindo eventuais medidas de correção de rota, caso as circunstâncias dos acontecimentos futuros (imprevisíveis na maior parte) imponham essa necessidade. Monitorar e avaliar, dois verbos cada vez mais prementes na temática das políticas públicas, são tarefas essenciais para a manutenção da legitimidade perante a opinião pública de uma iniciativa como essa, tendo em conta a grande monta de recursos públicos envolvidos.
Em resumo, o que se conclui da recente proposta de política industrial do Governo Lula III é que vai na direção certa: alinha-se às práticas dos países centrais e propõe iniciativas inovadoras para a realidade brasileira (estruturação do complexo da saúde, aposta na bioeconomia e na transição energética, por exemplo), em linha com o que aponta a literatura especializada. Precisamos, como partícipes do debate econômico nacional, pensar no longo prazo, no papel que queremos para o Brasil na divisão internacional do trabalho. Termos responsabilidade fiscal não é, de modo algum, antagônico à proposta anunciada pelo governo. No entanto, é necessário ampliarmos a discussão do debate, saindo do curto-prazismo que prepondera. Deve-se ter em conta, no entanto, que os riscos de insucesso existem (como em qualquer política econômica, seja industrial ou não) e se originam de diferentes causas. Aprender com as limitações e erros das experiências de políticas industriais passadas é fundamental. (Publicado por Sul 21, 27/01/2024)
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli Revisão: Celia Bartoni
Leia Política Industrial: heresia ou solução?, de Paulo Kliass