1) Introdução: o debate econômico nunca foi tão politizado

O debate econômico sobre a Guerra na Ucrânia é indissociável do debate político sobre a mesma. Nem poderia ser diferente, dada a passionalidade com que o conflito vem sendo tratado por governos e imprensa do chamado “mundo ocidental”, a ponto de colocar em xeque a própria confiabilidade e isenção de organizações voltadas à checagem da veracidade de informações. E, tal como no plano político, onde os alinhamentos estão extremamente confusos, também na análise econômica vemos heterodoxos e ortodoxos digladiando-se entre si e o fogo amigo é generalizado. Senão vejamos.

Na aparência, há pelo menos um consenso: a guerra está impondo uma inflação de custos em nível internacional puxada pela elevação dos preços dos combustíveis fósseis e das commodities em geral. Mas este consenso é meramente aparente. Na verdade, do nosso ponto de vista, não é a guerra na Ucrânia que está provocando uma elevação da taxa de inflação global, mas as sanções impostas à Rússia.

Esta distinção pode parecer sutil. Mas não é. Ela informa a posição política do autor da análise. Só aqueles que tomam as sanções como um desdobramento “natural e impositivo” da guerra podem associar diretamente guerra e inflação. E aqueles que consideram “naturais” sanções que não foram adotadas sequer durante a Guerra Fria já se posicionaram política e ideologicamente neste conflito. Infelizmente, alinhamento e falta de objetividade têm dado a tônica dos debates. Inclusive, como veremos, sobre os destinos do dólar como moeda mundial. Avancemos por partes.

2) O efeito imediato das sanções sobre a Rússia

A Rússia é uma das maiores exportadoras de alimentos, de fertilizantes e de minérios (inclusive daqueles essenciais para a produção de fertilizantes e defensivos agrícolas) do mundo. E o embargo comercial dos EUA, União Europeia e aliados ocidentais incidiu diretamente sobre estes produtos, cujos preços se elevaram imediatamente no mercado internacional. Como parcela expressiva dos países da UE é altamente dependente da oferta russa de combustíveis fósseis – petróleo e gás –, estes últimos ficaram fora das sanções europeias. Porém, a pressão dos EUA pela inclusão deste setor entre os sancionados, ampliou a incerteza e insegurança sobre a sustentabilidade de médio e longo prazo do abastecimento europeu, o que alimentou movimentos especulativos, com reflexos no curto prazo.

Para que se entenda este ponto, é preciso entender que as commodities não são comercializadas apenas como bens, vale dizer, em processos de troca onde um vendedor entrega “trigo”, “soja”, “petróleo” ou “minério de ferro” e um comprador entrega dinheiro (a princípio, dólar, a moeda mundial por excelência). O moderno mercado de commodities envolve, também, um amplo conjunto de “transações no futuro”. Em sua essência (e com o perdão de uma certa simplificação), este sistema funciona como um “seguro contra eventuais variações de preço”. É o espaço onde compradores futuros – que temem uma elevação muito expressiva dos preços – e vendedores futuros – que temem uma queda de preços muito grande – negociam e intercambiam seus riscos. Em última instância, aqueles que precisarão adquirir commodities no futuro compram, hoje, a segurança de que os preços não vão subir. Em troca, vendem hoje para os produtores de commodities um seguro de que os preços não vão cair. A exemplificação tornará a ideia mais clara.

Imaginemos um grande produtor de ração animal que utiliza dois insumos básicos: “soja e milho”. Imaginemos que, hoje, o preço destas duas commodities seja de US$ 20,00 e US$ 10,00 o bushel, respectivamente. Se suas expectativas forem de que os preços ficarão estáveis nos próximos meses, ele não precisará se precaver, comprando-os ex-ante. Porém, se ele teme que os preços se elevem, ele pode adquirir um “direito de compra” a preço estável. Vale dizer: adquire, hoje, o direito de comprar, amanhã, soja e milho aos preços vigentes, defendendo-se, assim, de eventuais valorizações.

A questão é: qual o impacto sobre os preços de amanhã de um aumento significativo, hoje, da demanda por proteção, por “direitos de compra a preço fixo”? A resposta é banal: os custos dos direitos de compra aumentarão. Se há maior demanda por seguro contra a elevação de preços, é porque muita gente está prevendo uma elevação de preços. Logo, diminui o número de ofertantes de “seguro de preço”, pois diminui o número de produtores que temem que o preço venha a cair. Ao fim e ao cabo, a tentativa, hoje, de adquirir seguro contra eventuais elevações “no mês que vem”, leva a uma elevação efetiva dos preços na madrugada de amanhã.

Este processo foi, em grande parte, o que se deu recentemente no mercado de combustíveis fósseis. Neste segmento, a União Europeia não impôs sanções sobre a Rússia e, portanto, oferta e demanda não sofreram um desbalanceamento. A diminuição da demanda (ela mesma, ínfima) dos EUA e do Reino Unido sobre a Rússia e o excesso de oferta daí oriunda foram compensadas pela ampliação da demanda dos EUA e RU sobre outros produtores e pelas tentativas da Rússia de vender seus excedentes para os aliados (ou, pelo menos, países não alinhados, asiáticos). Não obstante, as expectativas sobre sanções e desbalanceamentos futuros alimentaram a demanda precaucional. Que levou à elevação de preços dos combustíveis, pondo água no moinho da inflação mundial. Com rebatimentos nas demais commotities, cujos preços já haviam se elevado e que receberam novo influxo. Pois os mercados de futuro apresentam grandes e largos vasos comunicantes entre si.

3) A retomada da inflação nos países centrais

Mas nem a guerra, nem as sanções estão no centro da inflação contemporânea. A inflação mundial já vinha se elevando há algum tempo. As sanções impostas à Rússia estão levando apenas à aceleração da elevação dos preços. Por quê? Essencialmente porque a globalização começou a impor seu ônus aos países centrais, em especial aos EUA e aos países líderes da União Europeia. No plano econômico-produtivo, a globalização é, justamente, a exteriorização crescente, para a periferia, dos elos de menor complexidade tecnológica e mais empregadores das cadeias produtivas. Estes são os elos cuja extroversão mostra-se rentável quando dirigidos a países onde a taxa de salário contabilizada na moeda internacional (em dólares, em função da taxa de câmbio) é relativamente mais baixa.

O problema é que, com a passagem do tempo, a exteriorização da produção tende a se ampliar. Elos que, originalmente, apresentavam complexidade tecnológica superior à capacidade produtiva da periferia passam a fazer parte das competências dos novos centros de produção industrial; em especial, do mais desenvolvido destes centros: a China.

E à medida que a desindustrialização se aprofunda nos países centrais, aumenta gradativamente suas propensões a importar e a apresentar déficits nas Balanças Comerciais. Isto leva ao estreitamento (quando não ao fim) do superávit na Balança de Transações Correntes, afetando, gradativamente, a taxa de câmbio entre as moedas dos países centrais (que tendem à desvalorização) e das novas plataformas industriais do mundo (cujas moedas tendem à valorização). Estes movimentos – por menores e erráticos que sejam – vão levando, ao longo do tempo, à elevação do preço dos importados em dólares.

Este movimento é exacerbado pela elevação gradual da taxa de salário nominal e real na periferia, cujo processo de industrialização era indissociável de taxas de crescimento da demanda de força-de-trabalho acima do crescimento vegetativo da população. Ao fim e ao cabo, a globalização leva à alteração dos padrões câmbio-salário que justificaram a extroversão produtiva original.

Os bens de consumo em geral – sejam duráveis ou não duráveis – que eram produzidos na periferia com um determinado padrão de custo salarial e exportados a uma taxa de câmbio particularmente favorável aos países centrais, passam a ser produzidos e comercializados com base em salários mais elevados e taxa de câmbio menos favorável, o que se manifesta como inflação e depressão dos salários reais no centro. E o que é pior: esta alteração é suficiente para aprofundar a concentração de renda e as tensões políticas nos países centrais (já submetidos à desindustrialização, ao desemprego e à financeirização da riqueza). Mas não é suficiente para tornar rentável a renacionalização dos elos industriais extrovertidos.

4) As inflações também são nacionais

Para além dessas determinações mais gerais, há pressões inflacionárias que não são internacionais, mas rigorosamente internas, baseadas em determinações específicas a cada país. Os EUA, por exemplo, computam os aluguéis – sejam implícitos, sejam explícitos – em sua medida de inflação ao consumidor (custo de vida). E a desindustrialização dos EUA tem alimentado recorrentes bolhas imobiliárias, pois o setor da construção civil é um dos raros segmentos industriais protegidos de importação. Afinal, imóveis não são transportáveis. A cada nova bolha imobiliária nos EUA, os preços de imóveis e aluguéis se elevam e vive-se uma nova onda inflacionária.

O caso brasileiro é distinto. A nossa inflação recente desdobra-se, em grande parte, de inflexões de política econômica do governo Bolsonaro. De um lado, ela é fruto da política de queda de juros nominais do Banco Central entre meados de 2019 e 2021, que levou a uma significativa desvalorização do real em 2020 com a subsequente elevação dos preços de importados e exportados.

De outro lado, a inflação brasileira é função da política de administração dos preços dos combustíveis, um dos itens de maior impacto sobre o custo de vida, seja diretamente (gasolina e gás de cozinha), seja indiretamente (pelo impacto dos custos de transporte sobre todos os demais preços). Independentemente da perspectiva teórico-ideológica que se adote acerca do padrão mais adequado de gestão da Petrobras (como empresa privada ou rigorosamente pública), o fato é que o Brasil é autossuficiente em petróleo e, portanto, não está submetido às variações dos preços internacionais. E dado o poder de precificação da Petrobras, a inflação brasileira também é função das políticas de adoção (ou não) dos preços externos por referência dos internos.

Em suma: o discurso de que a inflação, seja no Brasil, seja no mundo, é função da guerra na Ucrânia não passa no teste de consistência. Não se trata de negar a existência de alguma relação entre a guerra e a aceleração recente da inflação. Mas ela não é a determinação original e a relação entre as duas variáveis é repleta de mediações.

5) Os impactos da guerra sobre a hegemonia do dólar

Outro tema que tem gerado muito debate e intervenções contraditórias diz respeito às consequências da guerra sobre a hegemonia americana e, em especial, sobre a sustentabilidade do dólar como moeda (meio de troca e pagamento) e dinheiro (unidade de conta e reserva de valor) internacional. Não são poucos os analistas (especialmente do campo da esquerda, críticos às sanções dos EUA e da UE à Rússia) que veem a captura e congelamento das reservas russas denominadas em dólar, euro, libra esterlina e yen como um marco histórico capaz de acelerar a crise do padrão Bretton Woods II*.

Do meu ponto de vista, esta leitura é, simultaneamente, correta e apressada. Também ela carece das devidas mediações. A crise do dólar como padrão de referência é real e ganhou nova impulsão com as sanções. Mas, de um lado, ela vem sendo gestada há muito tempo. E, de outro, ela não vai se realizar com rapidez. Até porque não depende apenas de decisões e políticas sobre as quais os países negativamente afetados pelas sanções (Rússia e aliados, inclusive China) tenham soberania. Por isto mesmo, entendemos que, a despeito do impacto negativo das sanções ocidentais sobre a confiabilidade no sistema monetário-financeiro internacional, entendemos que a hegemonia do dólar não se encontra sob crise imediata. Senão vejamos.

A base estruturante da longa e recorrentemente adiada crise do dólar é a perda de expressão da economia norte-americana e de seus principais aliados nas últimas décadas. De acordo com o FMI, a participação da economia norte-americana no PIB mundial caiu de aproximadamente 19,8% em 1993 para 15,8% em 2020. Neste mesmo período, a participação no PIB mundial do G-7 (EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá) caiu de 41,8% para 29,2%.

Por oposição, a participação da China no PIB mundial evoluiu de 4,9% para 18,2% entre 1993 e 2020. Desde 2016, a economia chinesa é maior que a norte-americana. Mais: entre 1993 e 2020, a participação dos BRICs na economia mundial evoluiu de 16,7% para 31,1%. Ou seja: a economia dos BRICs, hoje, é maior do que a do G7; em 1993 correspondia a 40% do G7. E esta mudança de papeis não se deve apenas ao extraordinário dinamismo da China. Em 1993, o PIB indiano correspondia a 41,3% do PIB japonês. Em 2009, a Índia tornou-se a terceira maior economia do mundo, superando o Japão. Em 2020, o PIB indiano foi 1,69 vezes maior que o japonês e duas vezes maior que o alemão.

A Rússia, por sua vez, chegou ao fundo do poço – após a crise da URSS – em 1998, quando seu PIB representava meros 2,8% do PIB mundial. Em 2013 sua participação no PIB mundial já era de 3,5%; maior do que a participação da Alemanha, de 3,4%. Desde 2014, com a ocupação da Crimeia e as sanções ocidentais que sua taxa de crescimento declinou. Mas, mesmo assim, a economia russa disputa com a Alemanha o sexto lugar entre as maiores do mundo. Enquanto o Brasil continua à frente do Reino Unido e da França.

E não é tudo: com a desindustrialização do G-7, a participação dos países emergentes no comércio mundial cresceu de forma ainda mais expressiva. E isto porque as novas plataformas industriais do mundo precisam importar matérias-primas (via de regra, de elevado volume por unidade de valor agregado) e exportar produtos manufaturados, enquanto os países centrais tornam-se meros importadores de bens manufaturados, de importação pequena quanto ao volume. A expressão sintética deste processo é a hierarquia internacional dos portos por volume de carga. Dos dez maiores portos do mundo em 2020, nove encontram-se na Ásia, sendo que sete na China, um na Coréia (Bussan) e um em Cingapura. O único porto ocidental na lista é Roterdã, na Europa. Nenhum deles encontra-se nos EUA.

Ora, o fundamento primeiro do acordo de Bretton Woods era a hegemonia econômico-produtiva dos EUA e sua previsível centralidade no processo de reconstrução dos países capitalistas no pós-guerra. Esta hegemonia não existe mais. E seu fim anuncia a crise de Bretton Woods e da hegemonia do dólar. Porém, entre o anúncio e a realização da crise há uma enorme distância, que passa pelo fato de que, no capitalismo contemporâneo, o comércio de bens e serviços produtivos é apenas uma parte das transações mundiais. E é uma parte cada vez menor. A maior parte das transferências internacionais de recursos se realiza no circuito estritamente financeiro. E, nesta área, os EUA ainda são – e serão, por muito tempo – imbatíveis.

6) Circuito produtivo e circuito financeiro

Na medida em que a maior parte das transações comerciais internacionais se dá entre países da (antiga) periferia, estas transações não precisam necessariamente ser contabilizadas e/ou quitadas em dólar. Rússia e China ou Brasil e Argentina podem comerciar diretamente nas suas moedas, tomando a taxa de câmbio recíproca por referência. E este padrão de transação vem ganhando expressão cada vez maior.

Contudo, seria precipitado extrair deste desenvolvimento a conclusão de que o dólar deixou de “participar” do intercâmbio. Desde logo, a taxa de câmbio entre o rublo russo e RMB chinês não é dissociável da taxa de câmbio entre dólar e rublo e dólar e RMB. Pois o dólar é que é a moeda de referência, a “unidade de conta” do mundo. Construir um sistema cambial independente do dólar envolveria criar uma nova moeda de referência, como bem nos alerta Glazyev. Este sistema já está em gestação nas tratativas da União Econômica Euroasiática com a China e a Índia. Mas sua consolidação será um processo longo e, num primeiro momento, circunscrito ao novo (emergente) centro econômico mundial: a Ásia.

O ponto crucial, porém, não é sequer este. Começamos a ter noção do tamanho do iceberg abaixo da superfície quando entendemos os limites de uma nova moeda para a quitação de débitos junto a economias que apresentam superávits comerciais estruturais. O Brasil, por exemplo, tem superávits comerciais estruturais com a China. O que é essencial para a preservação do (discreto) dinamismo da economia brasileira. A China consome tanta soja e minério de ferro que, se fosse nos pagar com mercadorias, a desindustrialização nacional seria levada a um ponto irreversível, com o retorno do país ao papel de exportador de matérias-primas.

Mas – pergunta-se – a China não poderia pagar com RMB ou com a nova moeda em gestação nos acordos asiáticos? Teoricamente, sim. O problema é que reservas em RMB ou em moedas escriturais internacionais (como os Direitos Especiais de Saque, do FMI) tem baixa liquidez e não são passíveis de aplicação no sistema financeiro internacional. Ao contrário dos mercados de capitais norte-americano e (em menor grau) europeu, o mercado chinês de capitais é fechado para o exterior. E este fechamento é parte essencial do controle estatal da dinâmica econômica chinesa. Vale dizer: é cláusula pétrea para o Partido Comunista Chinês.

De outro lado, sequer existe um mercado financeiro para aplicações em moedas escritural-artificiais. Os países centrais poderiam abrir seus mercados a aplicações nesta moeda? Não. Eles poderiam – isto sim, mesmo com grandes resistências iniciais – adquirir as reservas na nova moeda, com vistas a sanar seus déficits com China e Rússia. Mas, ao fazê-lo, eles as converteriam em dólar ou em euro. Pois as aplicações nos mercados financeiros dos EUA e da Europa só podem ser feitas com as moedas de circulação interna. Logo, voltamos à estaca zero. Ou quase.

7) Quando virá a crise do dólar?

Ao longo dos anos 70, o dólar foi objeto de contínua desvalorização, havendo perdido quase 25% do seu poder de compra sobre as principais moedas do G-7 à época (libra esterlina, marco, yen e franco francês). Esta desvalorização levava ao encarecimento dos importados, à elevação da inflação nos EUA, à perda do poder de compra dos salários e ao aprofundamento da concentração de renda.

A partir de 1979, o Banco Central norte-americano (FED) passa a elevar sistematicamente as taxas de juros sobre os títulos da dívida pública norte-americana. O motivo declarado da Nova Política Econômica do FED (NEP-FED) era o enfrentamento da inflação, mas ela gerou um amplo conjunto de efeitos secundários. Em primeiro lugar, enxugou a liquidez mundial e colocou toda a periferia dependente de empréstimos internacionais em crise – o que levou às duas décadas perdidas no Brasil e na América Latina e abriu a crise nos países endividados do Leste Europeu (que se “resolveria” na queda do Muro de Berlim e no fim da URSS). Além disso, a NEP-FED levou à revalorização do dólar. De forma persistente.

A NEP-FED baseava-se em taxas de juros exorbitantes para os padrões norte-americanos (chegaram a superar os 20% a.a.) e foram acompanhadas pela elevação dos déficits fiscais do governo Reagan e dos déficits com o exterior. O resultado foi a brutal elevação da relação Dívida/PIB nos EUA. Em 1979, a dívida pública norte-americana – que é tanto interna, quanto externa, pois nominada na moeda internacional! – correspondia a 32% do PIB dos EUA. Em 1998, esta dívida correspondia a 60% do PIB. Em 2008, às vésperas do estouro da bolha imobiliário-financeira, ela era de 68% do PIB. Entre 2008 e 2021, com os dispêndios para a salvação do sistema financeiro e produtivo nacional, as reduções de impostos de Trump e as políticas de enfrentamento da pandemia, ela atingiu 124% do PIB norte-americano.

De uma perspectiva ortodoxa, o crescimento contínuo da relação Dívida/PIB deveria levar a expectativas de inflação crescente e à desvalorização da moeda. Mas entre 1980 e 2020, os EUA viveram uma situação inversa. O crescimento da dívida pública sustentada, em grande parte, desde o exterior, contribuiu para a consolidação do papel da economia norte-americana como centro financeiro mundial. Um processo que foi grandemente reforçado pela abertura das maiores Bolsas de Valores Norte-Americanas para a negociação de ações de empresas estrangeiras** e das maiores Bolsas de Mercadorias para a operação com títulos referidos à produção, circulação e garantias de preço de mercadorias produzidas no mundo todo.

Em suma: os EUA compensaram sua decadência econômico-produtiva transformando-se na “Disneyworld da especulação mundial”. Há décadas, sustentam déficits internos e externos com emissões monetárias. Estas são parcialmente esterilizadas através do crescimento da dívida pública, e parcialmente canalizadas para a “circulação inativa”, vale dizer, para o circuito financeiro, o que mantém o poder de compra do dólar no plano internacional, barateando as importações e deprimindo o custo de vida e elevando o salário real internamente.

Esta situação é sustentável? Não; não é. E ela já começa a fazer água, como vimos acima na análise da inflação norte-americana contemporânea. Mas trata-se, sim, de uma equação resiliente. Até porque contou, até hoje, com a sustentação chinesa. À China interessa um dólar forte e um RMB fraco. Este é o sistema que transformou a China na grande plataforma industrial e de exportação do mundo. E é por isso mesmo que a China se recusa a abrir seu mercado de capitais. Se o fizesse, o Estado chinês perderia capacidade para administrar sua taxa de câmbio, e a competitividade industrial chinesa seria ameaçada pelos novos emergentes (Vietnã, Índia, Camboja, Bangladesh, etc.).

A superação efetiva desta equação não envolve apenas a emergência de uma nova moeda de referência para as transações internacionais. Ela passa, também, pela perda de confiança na sustentabilidade do dólar enquanto reserva de valor e do sistema financeiro norte-americano enquanto gerador de rentabilidade positiva aos investidores externos.

Até agora, as manifestações de perda de confiança vêm sendo controladas por mudanças tópicas e erráticas nas políticas de juros do FED. E assim será. Até que emerja uma crise financeira nos EUA ainda mais violenta do que a de 2008. Uma crise cujo enfrentamento pelo governo tenha de passar pela destruição parcial dos direitos de credores externos sobre os passivos dos endividados setores público e privado norte-americanos. Este será o golpe fatal.

Em suma: a perda de confiança no dólar já está em processo. A inflação norte-americana corrói o poder de compra desta moeda, que vem se desvalorizando (de forma errática, mas persistente) frente às divisas emergentes. Mas enquanto a desconfiança sobre a solvabilidade do sistema financeiro norte-americano não crescer tanto a ponto de os países superavitários preferirem manter suas reservas internacionais em “dinheiros” não aplicáveis (como o RMB ou novas moedas escriturais-artificiais) o dólar continuará a ser a moeda financeira por excelência – a moeda nas quais os países superavitários exigirão a quitação de seus créditos.

Quando emergirá a anunciada e propalada crise final do dólar? Não há como prever. A ciência econômica explica o “como”. Para saber o “quando” precisaríamos de uma bola de cristal. Infelizmente, elas não existem.

NOTAS:

*O acordo de Bretton Woods, de 1944, instituiu o dólar como moeda mundial. Em seus termos iniciais, o dólar teria lastro ouro. Em 1971, Nixon rompe com o sistema de lastro e institui a fase II de Bretton Woods, com o dólar meramente fiduciário. Desde então, os EUA contam com senhoriagem monetária (poder de adquirir bens e serviços por emissão de dinheiro) sobre o mundo sem qualquer restrição comercial ou cambial.

**Ou, mais exatamente, para a negociação de ADRs (American Depositary Receipts) que são títulos representativos de ações de empresas estrangeiras. O processo de financeirização da riqueza passa, também, pela multiplicação de títulos e papeis (derivativos) representativos dos mesmos ativos, que passam a ser negociados em distintos mercados.

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

Clique aqui para ler artigos do autor.