O filósofo da libertação Enrique Dussel considera que Karl Marx não está teoricamente morto, mas, ao contrário, produzirá um novo impulso no pensamento filosófico e mesmo teológico.[1] Para ele, Marx, luterano de origem judia,[2] se preparou para ser professor adjunto de Bruno Bauer em Bonn, onde este era professor de teologia. Dessa maneira, se Marx não tivesse deixado a Universidade, teria sido um professor de teologia. Aliás, a teologia não estava fora do horizonte existencial de Marx,[3] porque o protestantismo da região renana, que influenciou Tréveris, cidade natal de Marx, recebeu influência pietista.[4] Detalhe: o pietismo foi uma revolução dentro do movimento luterano, negou os dogmas, confrontou a hierarquia eclesiástica e deu mais importância à experiência religiosa pessoal do que à liturgia dos cultos, transferindo, de certa, a igreja para dentro das casas. E influenciou grandes pensadores alemães como Emmanuel Kant, Schelling e Hoelderlin. Assim, ainda no segundo grau, Marx conheceu o pensamento pietista através dos ambientes hegelianos de Berlim e da filosofia vigente na época. [5]
Dessa maneira, as posições éticas e filosóficas de Marx estiveram imbricadas com os problemas teológicos da época. A partir de tal leitura, vemos que Marx apresentou soluções para problemas teológicos. Por isso, não é de admirar, diz Dussel, que se possa descobrir posturas teológicas no pensamento de Marx. E para Dussel, uma dessas questões é a doutrina do anticristo, presente no pietismo, que Marx utilizou para se opor ao Estado luterano e posteriormente para lançar sua crítica contra o capital. Assim, Marx trabalhou com duas premissas, a primeira delas diz: se um cristão é capitalista; a segunda premissa é: se o capital é a besta do Apocalipse,[6] o demônio visível.[7] Na tradição judaica, Deus é transcendente, donde uma divindade visível é satânica, idolátrica, não pode ser Deus. E a conclusão é: esse cristão se encontra em contradição prática.[8]
O cristianismo da primeira premissa é o cristianismo existente, cotidiano, enfim, o cristianismo protestante, luterano, puritano da Europa na época de Marx. O capitalismo é igualmente o realmente existente, compreendido cotidianamente por todos. A segunda premissa apresenta o capital como Moloque, fetiche, o demônio visível, como desenvolvimento da doutrina do anti-Cristo pietista. O cristão se encontraria numa contradição clara, porque o exercício cotidiano da práxis no sistema capitalista envolveria eticamente uma ação demoníaca.[9]
E tal construção lógica é verdadeira e o cristão só tem quatro maneiras de livrar-se dela: 1) afirmando seu cristianismo e renunciando ao capitalismo; 2) afirmando o capitalismo e renunciando ao cristianismo; 3) inventando uma religião fetichista, com o nome de cristã, modificada de tal maneira que não seja contraditória com o capital; e, por último, 4) interpretando de tal maneira o capital, a fim de que não apareça como contradição diante do cristianismo profético.
As possibilidades 1 e 2 não necessitam nenhuma crítica porque solucionam a contradição objetivamente. Mas, com respeito à possibilidade 3, exige uma crítica da religião fetichista, questão que Marx não desenvolveu integralmente, mas sobre a qual deixou sugestões e que foi entendida pela tradição marxista e não-marxista como crítica da religião.
Dussel considera que essa crítica da religião fetichista é perfeitamente aceitável para uma consciência cristã autêntica, profética. Para ele, poderia-se dizer de Marx, o que disse Justino, no século II contra os grupos hegemônicos do império romano: “Daí que nos chamem também de ateus. E se se trata desses supostos deuses [romanos] confessamos ser ateus”.[10]
Com respeito à possibilidade 4, Marx dedica a ela toda sua obra, especialmente O Capital, impossibilitando ao cristão escapar da contradição, ao mostrar que o capital é mais valia acumulada, e como mais valia é objetivação do trabalho não pago, ou seja, não se pode esconder a visão crítica da não-eticidade do capital. Mas, por outra parte, para desenvolver seu argumento, Marx mostra também que o capital procura esconder essa não-eticidade através da pretensão de criar o lucro a partir dele mesmo. Essa pretensão é interpretada por Marx como fetichista. O caráter fetichista do capital é a outra cara da interpretação econômica, política ideológica, que oculta a essência não-ética do capital: é a afirmação do capital como “absoluto”. A crítica do caráter fetichista do capital é, em termos epistemológicos, uma tarefa econômico-filosófica.
E o argumento de Marx, como todo argumento, parte da premissa menor “e se o capital é anti-Cristo, o demônio visível”. Esse enunciado pode soar como se Dussel quisesse torcer o discurso de Marx para apresentá-lo como teólogo, mas, ao contrário, nos alerta para o fato de que essa contradição do cristão com o caráter fetichista do capital não foi ainda analisada, em termos filosóficos e econômicos, pela teologia. Mas, Marx, sem dúvida, desenvolve, de maneira metafórica, o tema nos capítulos quatro e cinco de O Capital, ao utilizar expressões como fetiche, demônio e besta do Apocalipse, Moloque,[11] Mamom filosófico-econômico[12] e Baal.[13] Para Dussel essas metáforas produzem como resultado um discurso paralelo dentro do discurso econômico-filosófico central de Marx. E ele chama tal discurso paralelo de teologia metafórica de Marx.
A metáfora e o símbolo não produzem um novo conhecimento filosófico-econômico, mas abrem um horizonte teológico. Caso fossem metáforas soltas, caóticas, puramente fragmentárias, se poderia falar, no máximo, que existem metáforas teológicas na obra de Marx. Mas como as metáforas têm uma lógica, então pode-se falar de uma proto-teologia ou de uma teologia implícita em Marx. Na verdade, Marx não teve a intenção de produzir uma teologia explícita e, por isso, no sentido estrito do termo, não podemos dizer que tenha sido um teólogo. Mas, segundo Dussel, abriu caminho para uma teologia. Um exemplo é especialmente importante para balizar essa apreciação: nos Grundrisse, falando do dinheiro, Marx diz que “[O dinheiro] de sua figura de servo, que antes se apresentava como simples meio de circulação, se torna de repente soberano e deus do mundo das mercadorias”.[14] Aqui Marx se está referindo ao texto do apóstolo Paulo, em sua carta aos Filipenses (2.6-7), que diz: “Ele, apesar de sua figura divina, não procurou ser igual a Deus, ao contrário, alienou-se a si mesmo e assumiu a figura de servo”. Sem dúvida, Marx utiliza o Novo Testamento de maneira sutil e consciente. Mostra o dinheiro como o inverso do Cristo, como anti-Cristo. Enquanto Cristo era “figura divina” que se alienou assumindo a “figura de servo”, o dinheiro, em movimento contrário, sendo “figura de servo”, se transforma em “deus”, em fetiche. Cristo se humilhou, o dinheiro se exalta, se diviniza. Trata-se de uma inversão.
Essa maneira metafórica de usar temas das escrituras judaico-cristãs e teológicos, obriga o leitor de Marx a uma leitura oblíqua, tanto filosófico-econômica como teológica. Só uma leitura aberta, que procura descobrir a lógica do discurso filosófico-econômico de Marx, pode traduzir as significações do caráter fetichista do capital dentro de seu pensamento. Esse é o caminho proposto por Dussel para a compreensão do discurso metafórico, de sentido teológico implícito, negativo e fragmentário de Marx.
CITAÇÕES:
[1] Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, Editorial Verbo Divino, Navarra, 1993, p. 5.
[2] Dussel cita Heinz Monz [Karl Marx, Grundlagen der Entwicklung zu Leben und Werk, Trier, 1973, pp. 215-222] e diz que “quase todos os rabinos de Tréveris desde o século XVII até a emancipação pertenceram à família dos pais de Karl Marx”. E segundo Arnold Künzli [Karl Marx, Eine Psychagraphie, Viena, 1966, p. 817], também citado por Dussel, Marx só é “compreensível desde a configuração do Antigo Testamento e da mensagem bíblica do judaísmo”. A mãe de Marx, Henriette Marx (1788-1863), era judia de origem holandesa, e teve entre seus familiares importantes rabinos. Seu sobrenome de solteira era Pressburg e Pressborck. Por motivos políticos, já que o imperador prussiano desejava uma burocracia homogênea, seu pai foi obrigado a se batizar, possivelmente entre 1816 e 1817. No dia 26 de agosto de 1824 Marx foi batizado. Sua mãe nunca se batizou, mantendo-se judia. Mas, ao que tudo indica, Marx não aprendeu hebraico, porque em seu exame de final do curso secundário não recebeu nenhuma nota em hebraico, o que leva seus biógrafos a deduzirem que não conhecia o idioma. E como seu pai, Marx era de origem pequeno-burguesa, formado na tradição judaica, mas também luterana com influências pietistas, dentro da cultura iluminista da época.
[3] Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, op. cit., p. 6.
[4] “O pietismo exigia dos fiéis a ação, a práxis, as boas obras, com um sentido de serviço, de responsabilidade política e econômica, que de alguma maneira tinham visto na Genebra governada pelos calvinistas. (…) É interessante ver que Marx criticará os puritanos na Inglaterra, e o protestantismo na Holanda, mas não o pietismo de Wuerttemberg, ao qual de certa maneira estava ligado”. Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, op. cit., p. 7.
[5] Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, op. cit., p. 13.
[6] Apocalipse 13.17: “Ninguém podia comprar ou vender, a não ser que tivesse o sinal da Besta ou o número de seu nome”. Apocalipse 17.13: “Esses dez estão de acordo entre si e entregaram à Besta o poder e a autoridade que possuem”. [El Capital, México, Siglo XXI, t. I/1, 1979, p. 106. Edição inglesa, London, t. I, 1977, p. 90: Marx-Engels Werke (MEW), t. 23, p. 101]. Dussel cita Engels, que em sua obra El libro del Apocalipsis (1883) [MEW, 21, p. 11] falando do fetichismo do capital, diz que “essa crise é o grande combate final entre Deus e o Anti-Cristo, como o chamaram outros. Os capítulos decisivos são o 13 e 17”. (Texto incluído na obra de Hugo Assmann, Karl Marx-Engels, Sobre la religión, Sígueme, Salamanca, 1974, p. 326). Engels cita o mesmo texto de Marx em O Capital, e comenta: “O cristianismo, como todo grande movimento revolucionário, foi estabelecido pelas massas” (Ibid., p. 324; p. 10).
[7] Karl Marx, La Sagrada Familia, México, Grijalbo, 1967, p. 86 (MEW, II, p. 21).
[8] Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, op. cit., p. 14.
[9] Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, op. cit., p. 15.
[10] Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, op. cit., p. 16.
[11] O Antigo Testamento no livro de Levítico 18.21 diz: “Não oferecerás em sacrifício o seu filho a Moloque (…)”. E o deus Moloque, a quem os amonitas queimavam seus filhos, é citado em 2 Samuel 12.30; Jeremias 32.35; Sofonias 1.5; e no Novo Testamento: em Lucas 20.2-5. E nos Manuscritos del 44 (OF, I, p. 107; CW, III, p. 273; MEW, EB 1, p. 512) Marx diz: “Para poder converter o amor em Moloque, no demônio corpóreo, o senhor Edgar começa convertendo-o em deus. E uma vez convertido em deus, quer dizer, em objeto teológico, cai naturalmente sob a crítica da teologia, e, como é sabido, Deus e o diabo não andam nunca um muito longe do outro”.
[12] “Acaso quando dizeis que deve dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, não considerais como Rei e Príncipe deste mundo não só ao Mamom de ouro, mas também […] à livre razão?”. Junto a Moloque aparece agora o outro nome do ídolo: Mamom. E Marx adota a posição dos profetas de Israel, explicitamente, já que se compara como jornalista a eles, apresentando-se como “traça para a Judéia e câncer para Israel”, referência ao texto do profeta Oséias 6.12. [Gazeta de Colonia, em OF, I, p. 233; CW, I, p. 147; MEW, 1, p. 42].
[13] Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, op. cit., p. 18.
[14] Enrique Dussel, Las metáforas teológicas de Marx, op. cit., p. 19.
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