“Não tinha acontecido nenhuma guerra geral de proporções continentais na Europa desde o fim do reinado de Napoleão em 1815.” Ian Kershaw, Descida ao Inferno – Europa 1914-1949 A violência na Rússia de Andrei Rublev

Dia do Juízo Final A violência na Rússia de Andrei Rublev

Na catedral, os andaimes estão montados, os ajudantes preparam as paredes, chega desesperado o monge encarregado da obra, perguntando “Onde está Andrei?”. “Não está”, responde enfadado um dos ajudantes. A cena é de total nervosismo, estão todos muito tensos com a ausência do artista. A obra não anda. Um mensageiro foi enviado ao príncipe. Corte para a próxima cena. Numa estrada no campo, o amigo mais próximo de Andrei argumenta desesperadamente enquanto um cavaleiro passa a toda velocidade, levando a mensagem ao príncipe.

“Se trata do ‘Juizo Final’. Você pode pintá-lo com os olhos fechados… Que tempo estamos perdendo! Faz calor e há pouca umidade. Já teríamos terminado a cúpula e as colunas… Que lindos poderíamos tê-los feito. Eu inventei um demônio assim: ele solta fumaça pelo nariz, pelos olhos…”

“O problema não está na fumaça!”, interrompe Andrei.
“O que há?”
“Não sei!!!”, responde, enfurecido.
“Por que você não me olha nos olhos?”
“Não posso!!!! Não posso pintar isso. Me dá asco, você me entende? Não quero assustar as pessoas. Você me entende, Daniel?”, diz agora docemente Andrei a Daniel.

Rodeado pela violência dos príncipes russos, a brutalidade dos tártaros, aliados ou não dos príncipes, pelas guerras intestinas e pelas invasões, pela miséria dos camponeses e pela ignorância, o Rublev de Tarkovsky, também ele Andrei, sente nojo pelas cenas do Juízo Final e se recusa a retratá-las porque não quer amedrontar o espírito das pessoas. Não quer, com sua arte, assustá-las ou deixá-las aterrorizadas. As personagens de suas pinturas são sempre apaziguadoras, capazes de nos transmitir algo como a paz do sublime.

Andrei Rublev é geralmente considerado o maior pintor russo de ícones. Viveu entre os séculos XV e XVI. As datas de seu nascimento e sua morte são imprecisas: 1360 ou 1370 e 1427 ou 1430, respectivamente. O Andrei Rublev de Tarkovsky é de 1966. É seu segundo filme.  Numa das cenas iniciais de O Sacrifício (seu último filme, 1985), enquanto folheia justamente um livro da iconografia russa que acabara de receber de presente, Aleksander diz: “Que grande refinamento, que sabedoria e espiritualidade e, ao mesmo tempo, uma simplicidade de espírito quase infantil. A combinação de profundidade e ingenuidade. Como uma prece… E, agora, tudo isso está perdido! Nós não sabemos mais nem rezar.”

Tarkovsky frequentemente tensionava seus filmes entre essas antípodas, o horror à destruição final e o sublime da criação humana.

Quase ao final de Nostalgia (1983), encarnando o louco das Termas Vignoni, o sueco Erland Josephson (figura central nas duas últimas filmagens de Tarkovsky) toma de assalto a estátua de Marco Aurélio na praça do Capitólio em Roma e, antes de se autoimolar, pronuncia um exaltado discurso. “Vocês, os considerados sãos, o que significa sua saúde? Todos os olhos da humanidade estão voltados para o precipício para o qual estamos nos dirigindo… São os que se consideram saudáveis os que levaram o mundo à beira da catástrofe.”

Tarkovsky, tanto quanto o seu Andrei Rublev, ou o personagem de Josephson em Nostalgia, sentem asco por esses seres que, estejam onde estiverem – nos cumes do poder de Estado, ou nos aparatos do Terror –, em nome dos seus sacrossantos princípios ou das raisons d´Etat, gozam ao nos empurrar para as bordas do Juízo Final.

Um século e 1/4 de história

De acordo com Ian Kershaw, mais ou menos a partir da transição do século XIX para o XX, a industrialização produz uma de suas mais importantes consequências. As classes trabalhadoras aparecem como força política organizada em partidos e sindicatos e ocupam o centro do palco. O surgimento da Segunda Internacional e dos partidos social-democratas e logo dos comunistas é consequência e causa das transformações que virão em seguida. Por um período de pelo menos um quarto de século, lá estarão também os anarquistas como protagonistas da política europeia, do império Austro-Húngaro à atrasada Rússia, da Espanha à ainda imperial Inglaterra, do sul da Itália à França, da Alemanha aos países bálticos. O auge dessa onda é, evidentemente, a vitória da revolução comandada pelos bolcheviques na Rússia, no final de 1917.

A partir daí, é só acompanhar a linha da história, a reação é incansável. Mais: às forças da direita tradicional soma-se muito claramente, a partir dos anos 1920, o que hoje chamamos genericamente como extrema direita. Não é necessário relembrar o que veio nas duas décadas seguintes – e que na península Ibérica permaneceu até quase os anos 1980. Esse avanço fulminante que tomou conta do Velho Continente só foi freado pela derrota militar de 1945.

O resultado da II Guerra paralisou por algumas décadas a ação desse monstro que agora, com força redobrada, volta a assombrar a civilização. A barbárie pode às vezes se disfarçar de modos menos toscos que os de um Mussolini ou um Bolsonaro ou um Jean-Marie Le Pen (basta acompanhar a trajetória da sua filha, por exemplo), eventualmente à caça de discursos mais equilibrados, vestir os trajes da burguesia bem-comportada, e vez ou outra esconder os dentes da besta para se apresentar como homens e mulheres de bem que se opõem às hordas selvagens. Os bárbaros agora seriam os outros e é contra a invasão bárbara que se apresentam como a única força com disposição e capacidade para enfrentá-la. Pode ser que alguns, ao contemplarem esses cento e poucos anos, enxerguem duas grandes ondas emergindo desde as fossas do inferno (dos lodaçais abismos psíquicos do ser humano), mas também é possível ver para além dessas duas ondas um único e poderoso movimento, apenas momentaneamente imobilizado pelo resultado da II Guerra.

O rancor dos humilhados

A alienação produzida pelo hiperconsumismo traz consequências e elas são epidêmicas e de grandes proporções. Os servos se levantam, mas não o fazem contra a servidão. Quando se colocam em movimento se voltam contra os próprios servos e, à semelhança dos operários que nos princípios da industrialização se rebelavam e destroçavam as máquinas, quebram os espelhos no qual veem refletida a miséria das suas existências espirituais. Repelem a imagem da sua própria repugnância. Recusam-se a reconhecer no inseto com o qual se deparam o ser no qual se transformaram. Impotentes para agirem contra a ordem que os submete, os submissos despejam seu rancor e sua raiva, não contra a submissão e a humilhação a que são cotidianamente submetidos, não contra a máquina de poder que os submeteu, mas contra aqueles que lhes apontam seu incondicional papel de subordinados na trama dos poderosos.

Essa frustração e esse rancor e essa fábrica de impotência são capturados pelos bruxos da ultradireita, da mesma maneira como há cem anos. (“Odio, Gunther! Você tem ódio! É um ódio jovem. Puro. Absoluto. Mas tenha cuidado. Esse potencial de energia e fúria é demasiado importante para ser usado numa mesquinha vingança privada. Seria um luxo. Um desperdício sem sentido. Venha comigo e te ensinaremos a administrar essa imensa fortuna que você possui. Investi-la melhor. Venha!”, diz um dos membros das hordas nazistas de Os Deuses Malditos, Visconti, 1975.) Esses feiticeiros compraram novos trajes e, amparados na indústria da publicidade, se tornaram muito melhores vendedores das fantasmagorias e dos fetiches com os quais alimentam o vazio espiritual que plasma a cidade contemporânea.

A esperança de um mundo que superasse as iniquidades do mundo do Capital durou muito pouco. É verdade que sobrevieram conquistas sociais e econômicas para grandes parcelas da sociedade, porque havia e ainda há espaços para essas conquistas. O capitalismo prosperou e se modificou, incorporando enormes massas de consumidores e segue fazendo isso. O Brasil, administrado pelo PT, é um exemplo disso. Logo, nascerão desejos e vontades e sonhos e apetites (e consciências) que são de imediato seduzidos pelas ofertas apresentadas nas prateleiras aparentemente infinitas desse universo, que se apresenta como se fosse o único modo de produzir a existência material da humanidade, quando, de fato, é apenas uma maneira insensata e incontrolável de produzir mercadorias. E ela, a mercadoria, é a verdadeira dona do pedaço. Não há mais quem se oponha a esse modelo diabólico. A esse modo de produção da existência material, levado a cada dia a um nível de exaltação e exacerbação que parece não enxergar limites e de fato não enxerga, porque é inumano, corresponde a uma espiritualidade também ela brutalizada e também inumana. É essa espiritualidade doentia e inumana que, durante todo o século XX tanto quanto agora, serviu e serve de pasto para esse monstro que só vemos crescer. O monstro da ultradireita.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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