Em setembro de 2021 o IPCA registrou 1,16%, a maior taxa para o mês desde o início do Plano Real, chegando a 10,25% no acumulado de 12 meses. Essa aceleração teve início em junho de 2020, quando se encerrou um período de três anos no qual a inflação flutuou no seu menor patamar histórico desde a adoção do Regime de Metas de Inflação (RMI), em 1999. Os principais itens que contribuíram para a elevação do IPCA foram os combustíveis e a energia – apresentando alta de 30% em 12 meses – e alimentos e bebidas – com 12%.
É fundamental relembrar os efeitos sociais perversos dessa alta de preços dos alimentos, pois ela afeta com mais intensidade as pessoas das faixas de renda mais baixas da população, que gastam uma parcela maior da renda com alimentos. Combinada a um cenário de elevado desemprego, recessão e precarização das relações de trabalho, a alta de preços dos alimentos eleva a parcela da população em insegurança alimentar e empurra o país de volta para o mapa da fome.
Os preços dos alimentos no mercado doméstico apresentam uma trajetória cíclica com grande volatilidade seguindo os preços internacionais. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) é uma empresa pública que acompanha a agricultura nacional, e possui um sistema de armazenagem cuja finalidade principal é garantir o fluxo de abastecimento constante, proporcionando maior estabilidade de preços e de mercado. Desde 2014 seus estoques foram reduzidos e armazéns fechados, renunciando a uma importante política para mitigar a volatilidade dos preços de alimentos.
Para combater a inflação dentro da institucionalidade vigente do RMI, o principal instrumento disponível ao Banco Central é a determinação da taxa básica de juros Selic. O RMI foi criado a partir da concepção teórica segundo a qual a inflação é um fenômeno de demanda. Assim, as elevações da taxa básica conteriam um suposto excesso de demanda agregada, afetando a inflação através dos canais de taxa de juros de mercado, de crédito, das expectativas, do câmbio e de preço de ativos.
Entretanto, é fato da dinâmica inflacionária brasileira no RMI que o principal canal através do qual variações da Selic afetam a inflação é o do câmbio. Quando a moeda doméstica se aprecia, o câmbio funciona como uma âncora, mantendo os preços de produtos e insumos importados baratos. O Real se manteve em uma longa trajetória de valorização de 2003 até o ano de 2011. A manutenção da taxa Selic em patamares elevados em comparação às taxas internacionais – considerando os indicadores de risco – contribuiu para a valorização do Real ao atrair fluxos de capitais internacionais. Durante dez anos a inflação dos produtos industrializados, mais sensíveis ao câmbio, manteve-se em patamares inferiores aos de alimentos e de serviços, permitindo que as metas de inflação fossem cumpridas, mesmo beirando seu limite superior, até o ano de 2014.
A inflação de serviços caracteriza-se por uma rigidez muito maior que a dos bens, pois está fortemente relacionada com a variação de salários e com o mercado de trabalho. No período compreendido entre 2005 (quando os preços de serviços passaram a crescer mais rápido que os de produtos industrializados de preços livres) até 2015 (quando os preços de serviço voltam a cair sustentadamente pela primeira vez em 10 anos), a inflação de serviços livres cresceu, em média, 7,6% a.a. Em comparação, os preços de produtos industrializados livres cresceram 3,6% a.a.
Em 2015 o teto da meta – que já vinha sendo pressionado – foi extrapolado com o IPCA fechando o ano em 10,7%, devido a uma conjunção de fatores, em parte, semelhantes aos atuais: ano de forte desvalorização cambial e pressões inflacionárias advindas de alimentos, combustíveis e energia. Nos anos seguintes, a inflação dos serviços caiu do patamar de 9% para o de 3,5%. Essa queda reflete a redução do poder de barganha dos trabalhadores – devido à baixa atividade econômica e elevado desemprego, mas também por influência das transformações institucionais do mercado de trabalho ocorridas no período.
É nesse contexto de recessão econômica com desemprego elevado, associado às condições das taxas de juros internacionais e indicadores de risco que se comportavam de forma favorável, que o Banco Central encontrou um espaço para a redução da taxa nominal de juros. O país entrava no ano de 2020 com sua menor taxa de juros nominal durante o RMI, em 4,5%, quando surge no mundo a crise pandêmica da Covid-19.
Com o início da pandemia o primeiro semestre de 2020 foi marcado por fuga de capitais internacionais e forte desvalorização cambial. Entretanto, o Banco Central insiste com a trajetória de redução da Selic durante o primeiro semestre, mantendo os juros domésticos abaixo das taxas de juros externas (acrescidas de risco) e reforçando, assim, uma pressão para desvalorização do Real. Para além da desvalorização, a taxa de câmbio passou a apresentar uma volatilidade muito superior ao seu patamar histórico. O aumento da volatilidade da taxa de câmbio além de elevar o grau de incerteza na economia adiciona mais um elemento inflacionário devido à existência de assimetria no repasse cambial para a inflação: desvalorizações cambiais são repassadas com mais intensidade que valorizações, fazendo com que a mera flutuação cambial tenha um viés inflacionário.
A adoção de medidas de lockdown e as drásticas mudanças nos hábitos dos consumidores – redução de serviços de alimentação fora de casa e elevação de compras por delivery – causaram distúrbios e interrupções em toda a cadeia global de abastecimento de alimentos acelerando ainda mais os preços internacionais, que já vinham em trajetória de crescimento desde antes do início da pandemia. Também foram muito impactados os preços de fretes e custos de transportes.
Entretanto, apesar de todas essas pressões inflacionárias, o ano de 2020 ainda fechou dentro da meta, com inflação de 4,5%. A inflação do setor de serviços permaneceu num patamar baixo durante todo o ano devido à queda da atividade econômica do setor e o elevado desemprego. Os preços industriais só acelerariam no segundo semestre, sentindo os efeitos do câmbio e a escassez de insumos como plásticos, papelão, alumínio, vidros e tecidos, causada pela queda na coleta de produtos reciclados e por interrupções da produção devido à pandemia.
A partir de dezembro de 2020 os preços de combustíveis disparam, acompanhando o movimento dos preços internacionais. Desde 2016, os preços de combustíveis praticados pela Petrobras seguem a política de manter a paridade de importação, seguindo os preços internacionais do produto. Dessa forma, além das pressões do câmbio, a volatilidade dos preços internacionais do petróleo também é repassada ao consumidor.
Por fim, completando o quadro atual, a partir de maio desse ano os preços de serviços voltaram a subir após mais de cinco anos de queda contínua, devido ao contágio dos demais preços e pela retomada das atividades do setor com o avanço da vacinação.
Chegamos até aqui portanto porque a condução da política anti-inflacionária nos últimos anos abriu mão de instrumentos que possuía para conter a volatilidade de preços e reduzir pressões inflacionárias. Tivemos o desmonte das políticas reguladoras de preços de alimentos da Conab e a mudança da política de formação de preços da Petrobras. A condução da política monetária pelo Banco Central manteve os juros domésticos abaixo do patamar ditado pelas taxas internacionais reforçando uma pressão para desvalorização do Real e não agiu para coibir a volatilidade da taxa de câmbio o que agravou as pressões inflacionárias advindas dos preços internacionais de commodities.
O câmbio desvalorizado favorece o setor agroexportador em um cenário onde os indicadores de insegurança alimentar da população pioram. A falta de crescimento econômico com o elevado desemprego dos últimos anos, a precarização e as transformações do mercado de trabalho reduziram o poder de barganha dos trabalhadores, que veem o poder de compra de seus salários sendo corroídos pela inflação. (Artigo publicado no Jornal dos Economistas de novembro de 2021.)
Ilustração: Mihai Cauli Revisão: Celia Bartone
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