Os interesses que estão em jogo após a tomada de poder pelo grupo Talibã em Cabul, no Afeganistão

Ilustração: Mihai Cauli

Quando os combatentes do Talibã entraram em Cabul no último dia 15 de agosto, consumou-se um ato que estava anunciado desde que, quatro meses antes, o presidente estadunidense avisou que retiraria as tropas de seu país do Afeganistão. O desenvolvimento da situação em agosto foi rápido, em especial na semana que antecedeu o dia 15, com as capitais provinciais afegãs caindo uma após a outra, no final, várias no mesmo dia. Uma ofensiva que consumou uma derrota previsível, 20 anos depois da entrada dos EUA e a derrubada do governo talibã.

Como demonstrou em vários momentos, a entrada triunfal das forças dos EUA é sempre fácil, com uma poderosa força aérea destruidora que abre caminho para a entrada do exército de ocupação, entre destroços do inimigo. O Afeganistão, nesse sentido, não foi muito diferente do Iraque, anteriormente, ou da Líbia, anos depois. A vantagem tecnológica e bélica das forças dos EUA (e, no caso do Afeganistão, da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, coalizão que reúne os parceiros militares dos EUA) é flagrante. E isso garante o impacto inicial. Mas vencer batalhas e derrubar governos é uma coisa, vencer uma guerra de longo prazo e construir alternativas nacionais é outra bem diferente.

Na metade do período de permanência no Afeganistão, altos comandantes militares dos EUA anunciaram que seriam necessários cerca de 400 mil soldados para ganhar a guerra. Um quarto desse número já seria mais do que insustentável politicamente nos EUA, que desde a invasão do Afeganistão passou de governo republicano (dois governos de George Bush filho) a governos democratas (dois governos de Barack Obama), retornando ao radicalizado governo republicano de Trump e chegando ao moderado governo democrata de Biden.

Ou seja, para a política dos EUA, um espectro político bem amplo de forças passou pelo governo dos EUA sem que houvesse mudança de perspectiva. A situação se mostrou um atoleiro, como outras guerras em que os EUA se meteram, e a saída, lembrada pela imprensa como similar à derrota no Vietnã, foi previsivelmente estabanada. Assim mostraram as cenas trágicas no aeroporto de Cabul da população se agarrando aos cargueiros dos EUA para tentar escapar.

A ocupação de 20 anos não produziu nenhuma alternativa política ou econômica para o Afeganistão. E os governos do período foram facilmente caracterizados como fracos politicamente e corruptos, abrindo caminho para o retorno talibã. Os EUA saem desgastados não apenas por sua vinculação a esta situação e a esses governos. Também pelo gasto trilionário ao longo desse período, por mais uma derrota militar, e pelas consequências para os direitos humanos que acontecerão por muito tempo com a volta dos fundamentalistas islâmicos do Talibã ao governo do Afeganistão.

Mais do que um olhar crítico sobre a ocupação e a derrota militar dos EUA, uma discussão que se seguirá é, para além das atividades ilegais. A produção e o comércio do ópio, por exemplo, que opções se apresentam para o Afeganistão a partir dessa nova realidade?

De fato, o quadro inicial é desolador, se lembrarmos o que foi o anterior governo do Talibã. Ele próprio tendo se desenvolvido em um caldo geopolítico incentivado pelos EUA da Guerra Fria para fazer frente, com o mote do fundamentalismo islâmico, ao poder consolidado da Rússia na Ásia Central. E sua dificuldade em conviver com princípios mínimos de garantia dos direitos humanos. Assim como em administrar uma situação de poderes provinciais descentralizados pelo jogo de interesses regionais, o dinheiro do tráfico e pelo poder dos “senhores da guerra” locais, tudo isso se articulando.

China de olho em Cabul

Mas temos agora uma grande novidade, que pode apontar um rumo para colocar alguma ordem na situação. Além de dar alguma perspectiva de futuro, o que talvez seja diferente das últimas décadas.

A milícia talibã sempre teve relações próximas com o governo do Paquistão. Há 30 anos, o governo paquistanês estava sob a órbita dos EUA, e também por isso apoiou o Talibã. Há alguns anos, o Paquistão mudou sua política, e se aproximou dos interesses chineses na região. Isso faz com que a China, de alguma maneira, possa se oferecer para negociar com o novo governo afegão.

E o que interessa à China? Fundamentalmente, estabilidade na Ásia Central para avançar o seu projeto de integração regional, conhecido como “Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota”, ou conhecido pelo “nome fantasia” de Nova Rota da Seda. Desse ponto de vista, um Afeganistão estável abriria caminho para rotas de transporte e de dutos de petróleo e gás que poderiam dinamizar a integração regional. Além de permitir o acesso chinês às riquezas minerais do país. A tranquilidade política e religiosa local também facilitaria as coisas na própria China, que administra não apenas uma pequena fronteira direta com o Afeganistão, como uma expressiva população muçulmana no Oeste do país.

Curiosamente, e sem que tivesse que envolver tropas, os interesses chineses abrem, depois de muito tempo, alguma possibilidade econômica para o Afeganistão. Se vai se consolidar essa possibilidade, só o futuro vai dizer.

Sobre o mesmo tema, leia também o artigo “A volta do Talibã“, de Lucia Helena Issa.

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