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Será o fim da Era Vargas?

Uma das questões que mais têm sido objeto de debate político é a do papel do Estado na sociedade moderna, e, em especial, na economia. Ouvimos muito frequentemente os argumentos de que haveria na ordem econômica uma divisão natural, na qual se identificam algumas atividades mais bem desempenhadas pela iniciativa privada e outras pela ação estatal, e que o segredo do bem-estar coletivo estaria no reconhecimento e na estrita observância dessas aptidões – uma espécie de teoria das vantagens comparativas aplicada aos diferentes traços essenciais de agentes públicos e privados. Nesse sentido, as correntes ditas mais liberais enfatizam a vocação dos agentes privados para a condução das atividades econômicas produtivas, reservando ao Estado a construção de uma infraestrutura social mais restrita à ordem jurídica e à educação, entendidos como elementos indispensáveis ao progresso material.

Em que pese a recorrência do argumento, observamos a partir de uma análise mais profunda que essa suposta divisão de competências não somente não ocorreu nos processos históricos concretos de desenvolvimento das nações ricas, como não é possível que isso se produza desta maneira. De fato, como bem destaca a pesquisadora italiana Mariana Mazzucato, em seu excelente estudo O Estado Empreendedor, engana-se quem imagina o desenvolvimento tecnológico das sociedades modernas como capitaneado na base pela iniciativa privada. Longe disso, Na obra citada a autora fornece suficientes exemplos de como as tecnologias contemporâneas derivaram de investimentos públicos em pesquisa e desenvolvimento. A questão tem, pois, uma complexidade que não cabe nos limites estreitos do dogmatismo ideológico em que a discussão frequentemente ocorre.

Com efeito, na era Industrial, nenhum país se desenvolve economicamente – salvo, talvez, em circunstâncias muito especiais – sem o domínio de tecnologias e de conhecimento científico mais avançados. Por sua vez, como deixa bem claro Mazzucato, em todos os lugares do mundo a pesquisa científica e de desenvolvimento tecnológico é eminentemente impulsionada pelo Estado. O melhor exemplo disso. Há uma razão muito clara para tanto: os investimentos no desenvolvimento da pesquisa científica são de enorme risco. Das muitas possibilidades que são investigadas, apenas uma pequena fração delas se mostra economicamente viável, de sorte que o agente privado tem (legítimo) receio dessa aposta totalmente incerta. Somente o Estado, a partir de seus recursos econômicos superiores e, sobretudo, de sua responsabilidade pelos destinos de sua sociedade, tem condições de exercer o protagonismo do fomento à pesquisa. No livro citado, Mazzucato salienta um caso emblemático do problema, qual seja, o da indústria farmacêutica, frequentemente louvada como a mola mestra do desenvolvimento tecnológico na área, mas que, na verdade, apenas assume a tarefa (sem dúvida importante) de dar forma econômica e comercial a um conhecimento de princípios ativos desenvolvido sob patrocínio majoritariamente estatal.

O Brasil atual caminha exatamente na contramão desse entendimento. Sob o mote da austeridade financeira e das políticas fiscalistas, temos assistido ao completo desmonte da estrutura de gestão e fomento da pesquisa no país. Seguindo sua proclamada política de “é preciso destruir antes de construir”, o governo do atual presidente tem asfixiado as fontes de financiamento do sistema, levando-o a uma situação-limite e à explosão de insatisfações abertas, com a dissolução de conjuntos inteiros de quadros qualificados de gestão e avaliação.

Na verdade, podemos situar essas ações deletérias no quadro mais amplo de uma profunda inflexão histórica no processo de desenvolvimento do país iniciado com a chamada Era Vargas. Naquele momento histórico adquirimos uma consciência mais aguda da necessidade de uma atuação determinante do Estado para o progresso da sociedade. Essa consciência se materializou em diversos elementos transformadores de nossa sociedade. Lembremos que os órgãos de estruturação e fomento da ciência e da pesquisa no Brasil, o CNPq e a CAPES foram criados durante o segundo governo de Getúlio Vargas, como suportes institucionais decisivos para a superação de nosso atraso científico e tecnológico.

Ocorre que, ao que parece, nossas elites sociais jamais abandonaram um sonho regressista de fazer reviver uma sociedade agrário-exportadora, apoiada em mão de obra desamparada e remunerada a um nível mínimo de subsistência. Se a meta da utopia reacionária talvez não chegasse a extremos de contemplar a restauração monárquica, ao menos ansiava pelo regresso às estruturas oligárquicas da República Velha, parcialmente desmontadas justamente pela Revolução de 30, que organizou, em torno de Vargas, uma nova hegemonia político-social.

Já nos anos noventa, o então recém-eleito Presidente Fernando Henrique Cardoso discursava dizendo que era preciso enterrar a Era Vargas. Não se sabe se por falta de força política, de coragem ou de convicção, seu partido não conseguiu concretizar plenamente o objetivo invocado. Entretanto, ainda que a meta não tenha sido substancialmente atingida naquele período, não podemos deixar de analisá-la e compreendê-la enquanto projeto.

Do ponto de vista primordialmente socioeconômico, quando pensamos no legado de Vargas nos vêm à mente imediatamente dois aspectos: a legislação trabalhista e o início da industrialização de base, notadamente representada pela CSN e pela Petrobrás, essa última já constituída no segundo período de governo de Getúlio. Consumado, pois, o golpe parlamentar de 2016, as primeiras providências do novo governo que se formou foram exatamente o ataque à CLT, derrogando boa parte dos dispositivos legais que amparavam o trabalhador, e o desmonte da Petrobrás, símbolo máximo de nosso nacionalismo econômico.

No entanto, a ofensiva regressista de nossas elites não se deteve apenas nesses elementos. Nesse segundo governo que sucedeu ao golpe de 2016 radicalizou-se o desmonte das estruturas públicas construídas ao longo do século XX, a partir de 30. Entre elas – certamente das mais importantes – está a profissionalização do serviço público, com a criação em 1938 do DASP, e a substituição da indicação política pela impessoalidade do concurso como mecanismo de ingresso na administração pública. Porém, o episódio trágico dessa pandemia que vivemos veio a evidenciar, de forma muito pedagógica, a importância do profissionalismo e da independência da máquina pública para a defesa do interesse coletivo. Quem ainda pode ter dúvidas de que foram justamente essas duas características que formaram um último baluarte nas políticas de saúde, fazendo com que a tragédia provocada pela doença não fosse ainda mais devastadora? Quem ainda pode ter dúvidas de que foi a atuação do SUS, completamente à revelia de orientação central por parte do governo federal, e, em muitos casos, até mesmo contrária às intenções nem tão disfarçadamente alimentadas pelo grupo de pessoas que hoje comanda o país, que evitou desastre ainda maior? Que a independência dos servidores e a competência profissional resultante da continuidade administrativa, ambos decorrentes da forma de recrutamento dos quadros da administração, foram itens indispensáveis à reação da sociedade, abandonada a si mesma, contra a tragédia? Revogar essas conquistas, fazendo as práticas de gestão pública retrocederem em quase um século representa   verdadeira insanidade.

Finalizando, a questão parece ser ainda mais profunda do que somente a de uma concepção econômica equivocada e radical, mesmo desastrosa. Todo esse movimento é um elemento de um projeto maior, de um mergulho arcaizante em direção ao retorno a uma suposta vocação de nação agrário-exportadora, senão abertamente, ao menos semi-escravista. Essa era, essencialmente, a estrutura vigente nas primeiras décadas do século XX. No entanto, as tensões do Brasil do século XXI não são comparáveis às de um século atrás, e que, portanto, os instrumentos de organização não podem ser os mesmos. A superação integral da chamada Era Vargas representa um mergulho suicida do país nas trevas do caos social. Esse não é um projeto nacional minimamente sustentável!

Não é possível moldar o país às utopias delirantes de sua elite escravista.

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Ilustração: Mihai Cauli
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