Mais um dia. São todos iguais, tanto faz. Me disse uma amiga que hoje era feriado. Não sabia. Parece que os dias se igualaram, embora nunca sejam iguais. Marcados pela paisagem infindável das árvores que ficam na calçada de frente para a minha janela, porque a que ficava na janela foi arrancada num ato de crueldade inigualável.

Era, é, continua a ser, o momento de terra arrasada. As árvores (e bichos) são queimadas na maior floresta do planeta e decepadas sem piedade das calçadas da cidade. Os corpos de seres humanos morrem como moscas, muito mais que moscas. Acho que nunca houve tanto empenho para matar gente como neste enorme e belo lugar.

Para além da política da morte, nada se faz. Sim, perdão, se faz: destilar ódio e sede de vingança todos os dias, várias vezes por dia. No Twitter ou nos vídeos do Youtube. As lives presidenciais são elaboradas no curralinho, pequeno cercado localizado na porta do edifício principal onde se aglomeram religiosos fanáticos e algumas mulheres de comportamento histérico e agressivo, com rostos visivelmente preenchidos de Botox e vestidas com camisas da seleção do time nacional no estilo baby-look.

As lives também são gravadas num quartinho especialmente preparado, talvez no próprio edifício presidencial, que mais parece uma guarida de fugitivo misturada com cenário de programa cômico de baixa qualidade. Nunca faz rir… ou às vezes sim, rir de tristeza, de espanto, de nervoso.

Torturador, disse o meu psicólogo quando lhe perguntei como definiria o comportamento do presidente, torturador. Será que nós deixamos que ele nos torture? Talvez sim.

Eu nunca assisto essas lives, só as vejo quando assisto TV, vídeos de analistas, filósofos, cientistas, jornalistas e outros youtubers que as mostram e as comentam. Desde que se iniciou esse desgoverno, como muitos o chamam, descobri mais um vício: assistir todos os dias, em cada minuto que me resta entre uma tarefa e outra, as análises políticas que acho mais sérias sobre o que está acontecendo.

Esses youtubers inteligentes têm se convertido nos meus grandes companheiros de resistência, de caminhada, de solidão e desespero. Também leio quase todas as notícias, nacionais e internacionais, e assisto os jornais. Tudo isso quando o trabalho remoto me permite. Sim, trabalho remoto.

Estamos no meio de uma pandemia. É a pandemia da Covid, causada pelo chamado novo coronavírus, que já não é tão novo, porque estamos há mais de um ano convivendo com o vírus e aguardando a vacina que, por enquanto, é a única cura. Os cientistas do mundo todo concentraram seus esforços e já fizeram várias vacinas.

Em alguns países, a vacinação avança a passos acelerados: países ricos, que investiram na produção de vacinas, e em alguns outros, não tão ricos, mas que fizeram encomendas de vacinas quando ainda estavam em desenvolvimento. E o que aconteceu com a gente? Neste grande trópico, o presidente, sim, aquele que não se importa com a morte dos outros, exceto com a dele próprio, de sua família, amigos próximos e alguns seguidores, ele não investiu e não encomendou a compra de suficientes vacinas.

Desde o início da pandemia, negou a importância e letalidade do vírus, até mesmo a sua existência. Depois negou as consequências que o vírus provocava. Disse que era uma “gripezinha”, que o povo, acostumado a “pular no esgoto”, ia resistir. Que só uns poucos velhinhos ou pessoas sem porte atlético como o dele, morreriam. Uns poucos eram perto de 800 na época, já era alguma coisa, não era não?!

Mas tudo bem, esse país é grande, tem muita gente, as pessoas morrem de doenças e de tiros todos os anos, faz parte. Como ele falou, de algo temos que morrer, e todos vamos morrer algum dia. Isso era verdade, claro. A morte faz parte da nossa frágil existência.

Mas ele só estava preocupado com a sua própria vida, que seria preservada pelos cuidados médicos de elite de que dispõe. Dali em diante, até hoje, minimiza a pandemia. Junto com a colaboração de alguns médicos, começou a receitar medicamentos e curas miraculosas que tinham se mostrado ineficazes no mundo inteiro, e aqui também, claro. Mas aqui não interessava.

As pessoas iam morrer, não é mesmo? Elas tinham que morrer. Havia superpopulação, muitos pobres, que ficavam esperando ajudas do governo, que seguiam os líderes que lhes davam comida, assim como fizeram aqueles “interesseiros que seguiram o Jesus (sic) quando começou a repartir os peixes e os pães”. Palavras do presidente, ditas no curralinho para os mais fervorosos seguidores de Jesus, um Jesus que eles criaram para eles mesmos, aquele que não deveria repartir nada, senão incentivar o esforço, o trabalho, a disciplina, o empreendedorismo, qualidades que esse povo indolente não tinha. Por isso, deveria morrer – de fome, pelo vírus ou de bala, perdida ou direcionada, já que as chamadas “balas perdidas” sempre matavam pobres, negros, favelados.

Todos eles “vagabundos”, no jargão do presidente e seus seguidores. E não eram poucos os encantados com esse discurso. Ele tinha tido 60% dos votos e depois de dois anos de discurso de ódio, morte por fome, bala e pandemia, ainda tinha um apoio de mais de 30%. Aparentemente tinha diminuído, sim. Mas esses 30% se identificavam profundamente com as suas ideias. Muitos estavam armados, porque segundo o presidente, havia que armar o povo. Qual povo? O que o seguia, claro.

E quem era esse povo? Além de muitos pastores e seus seguidores fanáticos que já constituíam uma grande massa, estavam algumas donas de boutique, donos de academias, motoristas de aplicativos defensores do discurso da livre empresa, os caminhoneiros que oscilavam no apoio dependendo do preço da gasolina, os milicianos, parte substancial do exército, parte dos policiais, e todas as outras categorias que andavam armadas, chamados de atiradores, colecionadores e caçadores.

Havia também fracassados na escola, candidatos a filósofos que não tinham concluído o ensino médio, acadêmicos frustrados que fizeram as suas teses copiando do Wikipedia ou plagiando, mauricinhos e patricinhas que não estavam nem aí pra nada, só queriam viver a vida que sempre era boa, e claro, vários artistas fracassados por terem perdido seus breves minutos de fama.

Também havia uma artista de sucesso, que até chegou a ser ministra da cultura durante um curto período. Ela se somava ao coro de gente que dizia que não devíamos olhar os mortos, que não devíamos ser lúgubres, que havia que festejar, não ficar pra baixo, que é isso gente, tem que olhar pra frente, pra frente, vocês são muito mórbidos! Nesse mais de um ano já ultrapassamos os 400 mil mortos pelo vírus. Tem que olhar pra frente, gente, pra que tanto negativismo, pra que falar de morte, gente!

E claro, o suporte principal do governo veio dos donos de bancos, dos principais acionistas das bolsas de valores, dos que especulam por milhões no mercado, donos das grandes corretoras e dos principais planos de saúde. Só agora eles se manifestavam, retirando timidamente o apoio ao presidente. Parece que depois dos 370 mil mortos e do aumento de mais de 200% das queimadas na floresta, eles estão começando a deixar de ganhar. O desprestígio internacional está afetando seus investimentos. Já não é mais seguro continuar investindo nos discursos desvairados do presidente. Não dá tanto lucro, e as coisas podem ficar pior.

Por que chegamos a esse ponto? Há que se perguntar isso, sim. Mas uma das respostas possíveis é que já estávamos nesse ponto há muito tempo. Essa mentalidade já existia, estava aqui, fazia e faz parte do imaginário de uma parcela da população. Em alguma medida, o “te vira, mermão”, estava aí. O “vou te fuder” ou “que se foda”, estavam aí. O “é um viado”, “é uma piranha”, estavam aí. Morrem 50 mil pobres por ano e o “não tô nem aí”, e o “são todos vagabundos que têm que morrer mesmo”, estavam aqui. “Direitos humanos é pra defender vagabundo”, e “tem que atirar na cabecinha deles”, estão aqui. “Esses mendigos, tem que tacar fogo com querosene ou jogar eles no mar de um helicóptero” – essa foi uma das frases mais célebres que ouvi de uma senhora que falava com voz descontrolada e olhos esbugalhados em um salão de cabeleireiro, um ano e meio antes do presidente ser eleito.

A partir desse momento, tive a certeza de que ele seria o escolhido, apesar da incredulidade dos meus amigos, que achavam na época que ele não teria chance. Mas ele realmente os representava e ainda os representa. O seu discurso uma semana antes de ser eleito ameaçava “metralhar a esquerdalhada”, se referindo aos eleitores do partido opositor, que sim, era progressista, mas nada radical.

Aliás, esse partido tinha governado o país durante 12 anos. E, apesar de não ter mudado radicalmente o sistema, tinha, nas palavras do presidente, se comportado como Jesus, dando aos pobres, mal acostumando o povo a receber sem dar nada em troca, “dando o peixe e não ensinando a pescar”. Agora havia que matar, matar a Jesus e os seus seguidores. Eles eram preguiçosos, não prestavam. Eram negros, “não pesavam nem 37 arrobas” e “não serviam nem para reproduzir”, tinha dito para a plateia que lotava um clube hebraico e o aplaudiu fervorosamente pouco antes da eleição.

Os dias passam, estamos sem vacinas suficientes porque o presidente não quis comprar. Os que podem trabalhar de forma remota continuam trancafiados, trabalhando num contínuo que nunca para, e destruindo as retinas e costas sentados horas e horas na frente do computador. Sorte nossa ainda! Os trabalhadores informais, os entregadores, os empregados de serviços, os empreendedores individuais e pequenos empresários nunca puderam parar de trabalhar, não recebem ajuda econômica do governo que lhes permita o sustento. A economia não pode parar! Esse foi o lema, repetido até o cansaço, que levou a toda essa mortandade e ao trabalho exaustivo dos profissionais da saúde que tentam muitas vezes sem êxito e sem medicamentos que diminuam o sofrimento, salvar as vidas daqueles que se amontoam nas UTIs dos hospitais lotados.

Os coveiros não param de trabalhar. Se revezam dia e noite, nos cemitérios, cavando buracos improvisados para enterrar os corpos que não param de chegar. Aqueles que não podem ser enterrados de imediato ficam em contêineres refrigerados até que se ache um lugar para finalmente descansar.

Jesus, e os pobres interesseiros que sempre o seguiram já foram crucificados várias vezes antes do morticínio acabar.

Relato de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.