As mentiras que contam sobre a gestão da dívida do governo.
Governos podem e devem rolar dívidas para estimular o crescimento econômico pagando juros reais inferiores à taxa de crescimento da economia. Comparar as finanças do governo às finanças das famílias é um erro, uma simplificação grosseira, de quem não entende as complexidades da gestão macroeconômica. É um entendimento que se enquadra numa camisa de força ideológica, de negação do papel de indutor do Estado na sociedade.
É comum que economistas neoliberais e a mídia aliada aos desígnios do mercado financeiro usem o argumento de que o governo não deve gastar mais do que arrecada e de que seu comportamento deve ser similar ao de uma família que limita seus gastos à sua renda. Nada mais falacioso.
Governos e famílias operam sob dinâmicas e restrições econômicas fundamentalmente diferentes. Eis as razões:
Soberania monetária: governos que emitem suas próprias moedas têm a capacidade de criar dinheiro. Isso lhes dá muito mais flexibilidade na gestão das finanças em comparação com as famílias, que não podem imprimir dinheiro para pagar suas contas. Um governo com soberania monetária pode financiar déficits tomando empréstimos em sua própria moeda, enquanto as famílias não podem.
Gestão de dívida e déficit: as famílias geralmente enfrentam limites rígidos sobre quanto podem tomar emprestado e precisam equilibrar seus orçamentos a longo prazo. Os governos, por outro lado, podem sustentar déficits por longos períodos. Enquanto a dívida de um governo for vista como administrável em relação à sua produção econômica (PIB), ele pode rolar continuamente sua dívida sem ter que “pagá-la” totalmente, diferentemente das famílias.
Horizontes de tempo: os governos operam em escalas de tempo mais longas do que as famílias. Enquanto os indivíduos têm vidas finitas e devem considerar a aposentadoria e outras restrições, os governos são entidades contínuas que planejam investimentos de longo prazo em infraestrutura, defesa e serviços públicos. Essas atividades podem levar décadas para render benefícios, mas são essenciais para o crescimento e a estabilidade futuros.
Influência macroeconômica: os gastos do governo influenciam diretamente a economia, diferentemente do que acontece com os gastos das famílias, que são mais restritos. Por meio da política fiscal (por exemplo, gastos e impostos) e da política monetária (no caso dos bancos centrais), os governos podem estimular o crescimento econômico, conter a inflação e administrar o desemprego. As famílias são mais limitadas por limites de renda e empréstimos, e suas decisões de gastos não têm o mesmo impacto sistêmico.
Dívida como uma ferramenta, não um fardo: as famílias geralmente veem a dívida como um fardo que deve ser pago com juros. Os governos, particularmente aqueles com economias estáveis, usam a dívida como uma ferramenta para financiar investimentos (por exemplo, infraestrutura e educação) que podem impulsionar o crescimento futuro. O serviço da dívida (pagamentos de juros) em títulos do governo geralmente é sustentável, desde que o crescimento econômico supere o custo do empréstimo.
Papel da Tributação: os governos podem aumentar as receitas por meio de impostos, ajustando as políticas fiscais para influenciar a atividade econômica ou atender às necessidades orçamentárias. As famílias não podem impor impostos para aumentar sua renda; elas dependem de salários, investimentos e poupanças.
Sustentabilidade da Dívida: requer que as taxas de juros pagas permitam ao governo continuar a refinanciar sua dívida de maneira sustentável, sem comprometer o crescimento econômico, enquanto financia investimentos públicos produtivos. O patamar adequado dos juros é aquele em que o custo do serviço da dívida seja compatível com a capacidade de pagamento do governo, que depende do crescimento econômico e da arrecadação de impostos. Isso significa que, mesmo rolando a dívida (emitindo novas dívidas para pagar dívidas antigas), os juros não devem sobrecarregar o orçamento público a ponto de forçar cortes significativos em gastos essenciais ou aumentar impostos excessivamente. A dívida será sustentável quando a taxa de crescimento econômico (PIB) for maior ou igual à taxa de juros real da dívida (taxa de juros ajustada pela inflação), permitindo que o governo aumente sua arrecadação e mantenha a dívida sob controle sem comprometer sua capacidade de investir.
Investimentos Produtivos: Se a dívida fiscal está sendo rolada para financiar investimentos em áreas que geram retornos econômicos no futuro (infraestrutura, educação, saúde, inovação tecnológica), esses investimentos podem aumentar a produtividade e o crescimento econômico no longo prazo. Assim, o aumento no PIB possibilitado por esses investimentos pode compensar o custo da dívida. No Brasil, uma taxa de juros real da ordem de 3% ou inferior (7% de juros nominais descontada a inflação de 4%) seria plenamente sustentável já que o crescimento do PIB está num patamar de 3,2% a.a. Nesse caso, investimentos produtivos em estradas, ferrovias, despoluição, energia limpa certamente gerarão um crescimento econômico adicional no futuro, que, por sua vez, aumenta a arrecadação de impostos e facilita o pagamento da dívida.
Confiança dos Credores e Estabilidade Macroeconômica: Juros adequados também refletem a confiança dos mercados financeiros na capacidade do governo de honrar suas dívidas. Se os investidores veem o país como financeiramente sólido e estável, eles estarão dispostos a emprestar a taxas de juros mais baixas. Ao contrário, uma percepção de risco elevado levará a juros mais altos, o que pode tornar a rolagem da dívida insustentável. Governos com histórico de estabilidade fiscal e política costumam pagar juros mais baixos ao emitir títulos da dívida pública. O valor do Credit Default Swap (CDS) reflete o prêmio de risco que investidores pagam para se proteger contra a possibilidade de calote (default) da dívida de um emissor. Para países classificados como investment grade, o CDS tende a ser mais baixo, refletindo um risco de crédito relativamente menor (inferiores a 100 bps). O Brasil já está caminhando a passos largos para a recuperação de seu nível de investment grade já que em 2024 o CDS de cinco anos aplicável ao país já se situa em 145 bps.
Gestão da Dívida Pública: A rolagem saudável da dívida também depende da boa gestão fiscal. Isso envolve garantir que o nível de endividamento seja compatível com a capacidade econômica do país e que a dívida seja usada para financiar despesas que tragam retorno econômico e social a longo prazo. No nosso caso, o patamar de Dívida/PIB (inteiramente em reais) está longe de comprometer nossa estabilidade e crescimento, sem mencionar a existência de reservas líquidas de USD 360 bilhões.
Conclusão:
Enquanto as famílias precisam equilibrar seus orçamentos e viver dentro de seus meios, os governos têm ferramentas financeiras exclusivas, responsabilidades mais amplas e maior flexibilidade, permitindo que administrem dívidas e déficits de forma diferente. Comparar as finanças do governo às finanças das famílias é um erro, um entendimento que se enquadra na minimização do papel do Estado na sociedade.
Juros adequados para a rolagem de dívida fiscal são aqueles que permitem ao governo refinanciar sua dívida de forma sustentável, sem comprometer suas finanças ou sacrificar investimentos produtivos que possam gerar crescimento econômico e, consequentemente, facilitar a gestão dessa mesma dívida no futuro. São inconsequentes as assertivas de que o Brasil ronda uma situação de calamidade fiscal perigando entrar numa espiral inflacionária. Em breve, ficará patente que nossos juros reais de 7,63% (a segunda maior taxa dentre 40 países) terão de ser substancialmente reduzidos para o cenário ideal, qual seja:
- Mais baixa que a taxa de crescimento do PIB nominal para que a dívida como porcentagem do PIB se mantenha estável ou diminua ao longo do tempo.
- Menor do que os retornos esperados dos investimentos públicos feitos com a dívida rolada.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli
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