Os erros do modelos usados pelos neoliberais e neoclássicos subestimaram em sete pontos percentuais a alta do PIB nos últimos anos e  superestimaram sua relação com o gasto fiscal.

Os economistas descrevem a economia como um assunto, uma ciência, uma disciplina e até mesmo uma profissão, mas é realmente um compromisso com certas maneiras de modelar o mundo. A depender das preferências políticas e ideológicas, eles poderiam voltar atrás e fazer um novo modelo, ou declarar que a distância entre a realidade e suas conclusões-modelo representava um fracasso por parte da realidade e sugerir uma política para alinhar o mundo. Não é difícil perceber por que essas pessoas se tornaram conselheiros influentes.

A economia e seus sacerdotes neoliberais parecem ter medo e repulsa de pensar sobre filosofia e metodologia. A grande maioria deles literalmente não sabe o que está fazendo. Muitos economistas ainda pensam que tornar os mercados mais competitivos é um substituto viável para o real funcionando dos mercados oligopolizados.  Essa visão pode funcionar no modelo, desde que se jogue fora qualquer informação que possa ser relevante para o problema real. Provar as coisas ‘no modelo’ e depois agir como se fossem verdadeiras no mundo real é um péssimo hábito dos economistas. Os economistas tendem a lidar com o problema da incerteza estratégica fingindo que ela não existe.

Um modelo econômico é aquele que arbitrariamente jogou fora a maior parte de suas informações. Fazer com que um economista mude de ideia é difícil; a profissão tem uma reputação justificada de isolamento e falta de abertura a ideias externas. O verdadeiro ponto cego da economia moderna é a concepção econômica neoclássica/ neoliberal/bastardo keynesiana.

A maneira de pensar dos economistas, especialmente a noção absurda de que tudo pode ser reduzido ao comportamento individual e depois agregado de volta ao comportamento sistêmico (falácia de composição), juntamente com um compromisso obstinado com a análise de custo-benefício e a pedra angular da otimização, infectou a tomada de decisões em toda a sociedade.  A perspectiva do mercado tem sido aplicada em lugares aos quais não pertence, e a valorização de tudo em termos de troca, juntamente com a compressão do tempo em seu presente descontado, são exemplos da marca da economia e sua influência na maneira como administramos empresas e governos.

A economia tem um papel imerecido e descomunal na sociedade moderna. Essa presença descomunal, no entanto, fica desconfortável ao lado da firme relutância por parte dos economistas em levar em conta a complexidade da realidade.  Ou, mais precisamente, para permitir a possibilidade de que simplesmente não seja possível otimizar nada no mundo real.

Em outras palavras, a enorme influência e impacto da economia em nosso mundo real foram comprados apenas removendo a disciplina desse mesmo mundo real. E a sombra lançada por sua virada pós-guerra, com seu impacto na sociedade e sua contribuição direta para nossa atual polarização política, é longa e perigosa.

Milton Friedman foi o grande sacerdote dessa virada, ao fazer o proselitismo de uma ideologia e popularizar um conjunto de valores que, quando totalmente desempenhados no mundo corporativo, levaram à inversão de uma ordem estabelecida que colocava os trabalhadores acima dos donos do capital.

No capitalismo contratual ou organizado dos anos de ouro do pós Segunda Guerra Mundial, a concepção dominante era de que os proprietários de capital existiam para fornecer bens e seguros aos trabalhadores. Os capitalistas gostam de se apresentar como absorvedores de risco. Eles se divertem em ser “tomadores de risco” e querem ser recompensados como tal. A sociedade concordou. As origens da forma corporativa de negócios foram um esforço para incentivar a tomada de riscos. Os proprietários de empresas foram protegidos de perdas massivas pela invenção da responsabilidade limitada. Em troca dessa mitigação de risco, esperava-se que eles fornecessem aos trabalhadores um seguro contra as vicissitudes do ciclo capitalista e proporcionassem crescimento na capacidade da sociedade de satisfazer seus desejos e necessidades.

O problema com essa ordenação da sociedade é que o risco recai em primeiro lugar sobre os proprietários do capital. Friedman forneceu um método ideológico para escapar desse enigma, argumentando que o objetivo da existência corporativa era nutrir retornos apenas para o capital. Todo o resto ele denegriu. A consequência foi a grande mudança de risco das últimas décadas. Os trabalhadores eram agora os absorvedores de risco. O capital foi protegido. A ideologia da otimização foi mobilizada como justificativa para essa mudança de risco. A economia foi usada, em outras palavras, para justificar uma reinvenção da ordem social com os trabalhadores atuando como amortecedores sempre que surgia uma crise. Assim, a natureza cíclica do capitalismo, com suas acelerações e retrações periódicas, tornou-se o ciclo da insegurança fiscal experimentada pelos trabalhadores. Em vez de serem tomadores de risco, os capitalistas tornaram-se avessos ao risco e sua participação na renda nacional cresceu de acordo com isso.  A desigualdade floresceu. Surgiu uma política polarizada.

A natureza deliberada dessa inversão e sua rejeição ao acordo quase socialdemocrata do pós-guerra entre capital e trabalho é a história do neoliberalismo. Infelizmente, a economia convencional se inclinou fortemente para a reestruturação performativa da sociedade em favor do capital. A economia passou a ser usada com muita facilidade como ferramenta nas batalhas da guerra híbrida atual, com os trabalhadores sofrendo com o peso dessa disputa geopolítica.

A otimização é, necessariamente, a redução da informação apenas àquela pertencente ao problema em questão. Outras informações são jogadas fora. Isso pressupõe, tragicamente, que a informação descartada não tem valor e que não há nada nela que possa alterar o futuro. Essa limitação infere um conhecimento do futuro que é absurdo e arrogante e também não pressupõe nenhuma mudança. E, no entanto, a mudança é a própria essência de um sistema capitalista. A incongruência é requintada.

Portanto, mesmo que a economia tenha reduzido sua relevância prática, ela aparece em todos os lugares. Suas impressões digitais ideológicas estão espalhadas por nossa paisagem socioeconômica, independentemente de fazer algum sentido. A economia, com essa concepção, se torna a arma para desencadear o caos político. Otimizando tudo cegamente, ignora qualquer coisa estranha a esse objetivo. A sociedade paga o preço. Qualquer sistema configurado para maximizar um único objetivo tem o potencial de enlouquecer.

É o que está acontecendo agora com as análises dos articulistas da grande mídia e os economistas ortodoxos (neoliberais e neoclássicos). Pela concepção do modelo de maximização no qual se baseiam, o crescimento da economia que não se adequar aos parâmetros e variáveis comportamentais para a revisão do desempenho econômico é uma ameaça ao equilíbrio sustentável e vai causar inflação. Para corrigir essa inadequação ao equilíbrio maximizador dos modelos, o único instrumento disponível é a elevação da taxa de juros pelo Banco Central.

O recente crescimento da economia no primeiro semestre de 2024 teve como causa principal o aumento do gasto público. Os erros desses modelos subestimaram em sete pontos percentuais a alta do PIB no pós-pandemia, sem contar 2024.

Os números apresentados pelo IBGE mostram claramente esse fato do real, contra todas as previsões dos modelos da Faria Lima/Leblon para o período. A economia acelerou seu ritmo no segundo trimestre do ano e cresceu 1,4%. Na comparação do segundo trimestre passado com o segundo de 2023, o PIB avançou 3,3% e no primeiro semestre, 2,9%. Os estímulos fiscais explicam boa parte do crescimento, que deixa uma herança estatística de 2,5% – o quanto o PIB evoluirá no ano se a expansão for zero nos dois trimestres restantes.

Os gastos das famílias aumentaram 4,9% no segundo trimestre do ano em relação ao segundo do ano passado. O consumo do governo subiu 3,1%. A indústria de transformação ressuscitou, crescendo a 1,8% em comparação com o primeiro trimestre do ano, e nada menos de 3,9% sobre o segundo trimestre de 2023, puxada pelos serviços de energia, gás e esgoto, que deram um salto de 2%. Importante para o crescimento geral, a construção civil avançou 3,5%. A expansão é ainda maior na comparação com o segundo trimestre de 2023, de 3,9%, com o setor de transformação a um ritmo de 3,6% e a construção civil, de 4,4%.

Os investimentos tiveram alguma recuperação na ponta, devido em boa parte ao aumento da importação de bens de capital. No trimestre, cresceram 2,1%, e 5,7% em 12 meses, mas sua evolução na taxa acumulada em quatro trimestres é ainda negativa, de -0,9%. A taxa de investimento geral da economia subiu para 16,8%, ante 16,4% do PIB no segundo trimestre de 2023, mas ainda está baixa, permitindo prever um grande espaço para a sua elevação, o que dará sustentabilidade ao crescimento econômico. O impulso fiscal diminuiu o desemprego a seu menor nível da série histórica para o mês de julho e os salários subiram acima da inflação. A renda disponível bruta aumentou 7,1%, de R$ 2,62 trilhões no segundo trimestre de 2023 para R$ 2,8 trilhões no segundo trimestre deste ano. As despesas de consumo final seguiram o mesmo compasso e subiram 7,18% – e as do governo, 9,6%.

A realidade não interessa para a Faria Lima/Leblon. Eles continuam a afirmar que a inflação, diante do crescimento robusto, reluta em cair e ameaça subir, como mostra a mais recente ata do Comitê de Política Monetária, que indica que um novo ciclo de alta de juros é uma possibilidade iminente. O governo deveria então concentrar-se em zerar o déficit público e cortar gastos, já que tudo indica que novos bloqueios e contingenciamentos serão necessários para isso.

Porém, de novo, o que significa aumenta os juros agora? Vamos aos dados. Os serviços da dívida, resultado da política de juros elevados, a segunda maior taxa de juros reais do mundo do Banco Central, promoveu gasto com juros de R$ 835,7 bilhões, no acumulado em 12 meses ou aproximadamete 7% do PIB. Elevar a taxa de juros vai aumentar a dívida pública em relação ao PIB, pois os juros estão em valores muito superiores ao crescimento do PIB. Estamos com um déficit primário ao redor de 2,5%  do PIB, o que (como os dados comprovam) foi o principal deflagrador da dinâmica de crescimento do PIB, que gera maior arrecadação tributária e o impulso para diminuir a aversão ao risco do investimento privado.

Continuar a enfatizar a busca pelo déficit zero, como previsto no Novo Arcabouço Fiscal-NAF, é restringir o crescimento econômico e fortalecer o rentismo generalizado, com o aumento da taxa de juros para combater uma inflação que não é de demanda, mas gerada pelo aumento dos combustíveis e de energia.

Como lembrado pela profa. Sulamis Dain em um post no Whatsap:

“Há um mês, a inflação norte-americana preocupava, e o ‘mercado’ previa a elevação da taxa de juros no Brasil. Pouco depois, a inflação norte-americana sumiu do horizonte e o FED indica a baixa de juros nos Estados Unidos.
Aí, o ‘mercado’ se preocupou com o ‘desajuste’ fiscal brasileiro, ainda que não existisse sinal de crise no horizonte, nem ameaça inflacionária. Mas, é claro, por esta razão, a taxa de juros deveria subir. Agora, o PIB deve crescer além do esperado, e o desemprego está caindo. Sempre aprendi que isso era notícia boa, até porque a arrecadação deve subir, e debelar a alegada ‘crise fiscal’.
Nãaaaaaao, diz o ‘mercado’a taxa de juros deve subir, para evitar a inflação, diante de uma economia aquecida.
Síntese: em qualquer cenário, é preciso que os juros subam, para alimentar o rentismo voraz. E em caso de dúvida sobre a “grave situação do país”, é sempre possível tirar mais um coelho da cartola:  a dita ameaça à autonomia do Banco Central, com a indicação de Galípolo para a presidência! Ou seja, catando piolho em careca, ontem, hoje e sempre, todos pela elevação dos juros. Fala sério!!!!!!”

O pior é que o efeito do ajuste fiscal zero e o impacto da elevação dos juros sobre a desigualdade da renda, pelo aumento da transferência de renda diretamente para os mais ricos e da pressão negativa sobre as transferências fiscais pela via da prestação de serviços para a população mais carente, é o resultado da hegemonia da política dos modelos sobre a realidade. Palavras vazias. A responsabilidade fiscal ou “superávit primário” são armas ideológicas da luta de classes para encobrir os enormes déficits sociais e com suposto apelo modernizante meritocrático da modelagem técnica para dizer que as reformas estruturais neoliberais são contra a “gastança” que impede o Brasil de prosperar. Porém, o seu real significado é afirmar que vai mudar para ficar tudo como está. O Estado não pode ser gerido como uma casa, onde não se pode gastar mais do que se ganha. O Estado cria moeda, quando credita nos bancos os seus gastos. Neste sentido, não tem limite para a emissão de moeda, exceto como uma proporção da capacidade produtiva, que não é medida pelo conceito de PIB potencial, não observável na realidade.

A hegemonia ideológica e política dessa concepção de estruturar e operar a política econômica é preocupante. Contudo, o mais grave é que um governo que se diz progressista a incorpore no NAF. Por isso temos que gritar em conjunto: “É o gasto fiscal, idiota!”

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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