A crítica de Lula ao Banco Central é correta

Tive a oportunidade de estar presente em muitas sabatinas e apresentações de banqueiros centrais no Senado Federal. É um show de hermetismo e lugares-comuns. Poucas vezes os sabatinados tiveram que esgrimir seus conhecimentos com os presentes.

Há vários motivos para isso. Primeiro, os governos responsáveis pela indicação dos tecnocratas querem poupá-los de maiores constrangimentos. Logo, seus senadores não trazem perguntas que poderiam não encontrar respostas palatáveis à opinião pública. Um ex-banqueiro central, em um momento de crueza atroz, chegou a dizer, já fora das suas funções públicas, que um pouco mais de desemprego seria desejável para reduzir os salários e a inflação de demanda.

Mas o Senado, que é a instituição da República com a atribuição de aprovar banqueiros centrais, retirá-los sob justificativa legal grave e monitorar as políticas do Bacen, não faz isso a contento, não porque os senadores não sejam conhecedores de política monetária, mas porque o Senado mesmo não está preparado para o debate da política monetária. Quando se trata do orçamento ou da política fiscal, a assessoria do Senado está muito mais aparelhada para apoiar os senadores em suas atribuições legislativas e de monitoramento.

O resultado é que o debate sobre a política monetária se dá entre operadores de mercados, imprensa especializada e as autoridades monetárias. Ocorre aqui o chamado efeito espelho. As opiniões se repetem e se reforçam sempre dentro de uma mesma abordagem. Não há propostas alternativas às já predominantes no Bacen. Isso porque os diretores do Bacen vêm das instituições financeiras e a elas voltam depois de saírem da função pública. É pior do que um paradigma de pensamento, que ainda pressupõe aceitar críticas às soluções prescritas aos problemas identificados na economia. É um conluio de interesses, que interdita o debate democrático sobre a política monetária e de crédito.

A autonomia dos bancos centrais deveria proteger as ações das autoridades monetárias contra os interesses políticos e também dos interesses dos bancos e outros grupos econômicos. Mas o viés de recrutamento já anotado aqui impede a ação plena da autonomia como forma de evitar a captura da autoridade monetária.

Mas, então, pelo menos a autonomia evita a captura por interesses políticos? Poderia ser assim. A utilização do Bacen para facilitar a eleição ou reeleição de um governo é uma distorção inaceitável na função da autoridade monetária. É inclusive crime eleitoral e contra a administração pública.

Pode qualquer autoridade monetária vestir a camisa de uma candidatura à presidência? Pode fazer parte de grupo de debate interno do governo incumbente? Certamente que não, pois sua credibilidade e impessoalidade estariam comprometidas definitivamente. A tolerância do mercado financeiro com este tipo de infração flagrante é mais um sinal da cumplicidade desta comunidade de interesses com os quadros que emprestam ao Bacen e/ou recrutam do Bacen.

Logo, aplicando essas considerações ao caso específico do Banco Central do Brasil, a situação é de uma autonomia operacional capturada por grupos de interesses econômicos e políticos. O atual presidente do Banco Central é egresso de um grande banco privado e provavelmente voltará ao setor. É portador do viés da síndrome do espelho, que é a de criar expectativas autoalimentadas e profecias autorrealizáveis. Por outro lado, há indícios de que integrava a equipe do governo anterior, de forma reservada, o que conflita frontalmente com a independência do Bacen.

A imprensa especializada e os agentes do mercado financeiro se escandalizam com as críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à política monetária do Bacen. Se não bastassem as considerações já feitas neste artigo sobre as falhas de gestão da autonomia do Bacen, há as falhas substantivas.

Ninguém pode achar normais taxas de juros reais básicas acima de 7,5% ao ano, em um mundo em que as taxas reais continuam negativas, apesar da escalada recente das taxas nominais.

A inflação esperada em 2022 não caiu pela atuação da autoridade monetária, mas sim porque o candidato à reeleição reduziu o choque de custos nos combustíveis para ganhar pontos com os eleitores. Coisa que ele poderia ter feito muito antes do período eleitoral, se estivesse mais preocupado com a carestia e menos preocupado em garantir lucros extraordinários aos acionistas da Petrobras.

A preocupação expressa pela autoridade monetária sobre a questão fiscal e sua pressão sobre os juros futuros tem algumas incongruências. Primeiro, esta mesma autoridade se recolheu a um silêncio estrondoso enquanto o candidato à reeleição ampliava os gastos públicos sem critérios para ganhar as eleições. Segundo, o Bacen critica o novo governo, como se suas próprias ações não gerassem um custo tremendo na dívida pública. Um país com taxas de crescimento do PIB abaixo de 1% e com juros reais de 7,5% está mesmo contratando problemas. Neste caso, gerados pelo próprio Bacen.

A situação não é nova e o  Bacen a agrava. Trata uma inflação de custos com um instrumento usado para combater inflações de demanda, a taxa de juros básica. Reduz propositalmente o crescimento do PIB, já muito baixo. Com isso, fragiliza as finanças públicas, através da queda na arrecadação das diferentes esferas de governo. Isto termina por aumentar a dívida pública, com rolagem mais cara, em função da própria política monetária. O fator financeiro é muito mais importante no crescimento da dívida do que os gastos primários.

O presidente do Bacen pressiona o ministério da Fazenda e do Planejamento a cortar gastos. Entende que o juro real é um mal necessário para controlar a inflação. Mas a taxa de juros é inócua para combater um choque de custos e, em última instância, sacrifica toda a sociedade para atender a fome dos rentistas e não a dos milhões de miseráveis que perambulam pelo país.

Pedir sacrifícios a uma população ainda em choque pelos efeitos da pandemia, que matou 700 mil, adoeceu 37 milhões, jogou milhões no desemprego e milhares de empresas na falência, já seria uma tarefa ingrata. Agora, pedir sangue, suor e lágrimas, em nome de uma ortodoxia obtusa do Bacen e que está fadada ao fracasso, é um escândalo.

A crítica dos grupos de interesses rentistas ao presidente da República não tem fundamento. A independência do Banco Central não é panaceia, (e tampouco é a questão principal) e não tem garantido o cumprimento de seu mandato. Não se deve esquecer que Lula escolheu Meirelles para o Banco Central e o manteve por oito anos e com autonomia operacional. Banqueiro, e eleito pelo PSDB, teria tudo para ter uma relação difícil com o presidente. Isso não ocorreu.

Para o presidente, é óbvio que Campos Neto não é um problema pela sua origem e sim pela sua conduta, que feriu sua credibilidade em vários momentos. Não é uma posição esdrúxula a do presidente Lula quando critica Campos Neto. É a obrigação de um estadista que vê seus compromissos com o desenvolvimento econômico e social do país serem sabotados por um Bacen de visão estreita e capturado por interesses outros que o do bem-estar da população do país.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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