“Nosso objetivo geral é … garantir que o descontentamento não continue a se desviar para a direita.”

“A Alemanha sempre foi mais uma sociedade de classe média, na qual os trabalhadores tendiam a se ver como parte da classe média. O que importa (aqui) é o forte bloco de empresas menores que podem se posicionar contra as grandes corporações. Essa oposição é tão importante quanto a polaridade entre capital e trabalho.” Esse é o primeiro dos pilares do programa do BSW (Bündnis Sahra Wagenknecht – Aliança Sahra Wagenknecht) nas palavras da sua principal líder. Saído do Die Linke e lançado há pouco mais de cinco meses, o partido de Sahra Wagenknecht ultrapassou nas eleições para o Parlamento Europeu partidos tão consolidados quanto o FDP (liberais, fundado em 1948) e dobrou o número de votos do próprio Die Linke. Numa longa entrevista publicada pela The New Left Review , a fundadora do BSW dá nome aos três outros pilares da aliança. O segundo eixo da Aliança é, segundo ela, a justiça social, o terceiro a paz, e o quarto a liberdade de expressão. Para nós que nos acostumamos nos últimos anos aos discursos voltados quase que exlusivamente para as questões ecológicas, de gênero e/ou de raça, é um espetacular turning-point. Então, será que existe no país que é o coração da economia europeia problemas de baixos salários, distribuição da renda, aumento da probreza e da desigualdade social? Em que “o sistema de saúde está sob enorme pressão… e você pode esperar meses até conseguir uma consulta com um especialista”, e o sistema escolar começa a gaguejar. A infraestrutura está caindo em desuso, a tal ponto que “o serviço de trens, a Deutsche Bahn, está permanentemente inoperante…”. Para a líder do BSW, a defesa de um Estado de bem-estar social forte é absolutamente vital. Pode soar algo conservador, no sentido de uma volta ao passado, ao passado por exemplo do que houve de melhor na SD alemã. Em certo sentido é, e em mais de um momento da entrevista a estrela em ascensão da esquerda alemã recorre ao passado dos seus rivais políticos, inclusive aos democratas-cristãos, para criticar suas posturas atuais. Há algo de um frescor clássico nos quatro eixos do programa do BSW.

II
“Em geral, estaríamos no mesmo comprimento de onda que qualquer partido de esquerda fortemente orientado para a justiça social, mas não preso ao discurso identitário.”

 Talvez seja difícil para quem não vivencia diariamente os telejornais e a leitura cotidiana da mídia dimensionar a pressão belicista que se está vivendo aqui na Europa. O mínimo que se pode dizer é que os instrumentos e meios utilizados são muito convincentes. Para quem, além disso, conheça um pouco a história e o que foi a atmosfera que antecedeu a carnificina da I Guerra, não será difícil perceber por que a defesa da paz deva fazer parte do programa de um partido político alemão. Na Europa atual, pouca gente o faz. (Aqui na Espanha, apenas o Podemos a tem como uma de suas bandeiras principais e, desde que se iniciou a guerra da OTAN contra a Rússia na Ucrânia, a defende com ênfase redobrada.) Como em 1914, quase todos se subordinam ao discurso armamentista e belicista. Ao contrário da adesão incondicional aos interesses militares do Império via OTAN, o que prega Sahra Wagenknecht é “uma nova ordem de segurança europeia, que deve incluir a Rússia no longo prazo” (sic). A Europa “não deve se deixar envolver em nenhum conflito entre os EUA e a China… e deve buscar seus próprios interesses”. A guerra da Ucrânia é “um conflito por procuração entre os EUA e a Rússia (…) e as oportunidades que existiam de encerrá-lo por meio de negociações foram desperdiçadas. Como resultado, a posição de negociação da Ucrânia se deteriorou significativamente”.

III 
“Ninguém pode esquecer que a Alemanha foi a perpetradora do Holocausto – as pessoas nunca devem esquecer esse fato. Mas isso não justifica o fornecimento de armas para os terríveis crimes de guerra que estão ocorrendo na Faixa de Gaza.”

No domingo, 16 de junho, reuniram-se na Suíça quase uma centena de países no que se denominou Conferência para a Paz na Ucrânia. Havia uns 60 chefes de Estado ou de Governo e os demais eram representantes ministeriais. Lula recusou o convite para participar, assim como a China e vários outros países do Sul. Uma das curiosidades da autodenominada Conferência de Paz era que nela estaria presente apenas um dos lados do conflito. A Rússia não foi convidada. O Brasil também se recusou a assinar o documento final e Lula justificou a atitude brasileira dizendo que “não é possível você ter uma briga entre dois e achar que se reunindo só com um resolve o problema”. Mas a nenhum grande ou pequeno meio de comunicação da free press ocidental ocorreu sequer registrar a estranheza (para não chamar de farsa). Outra peculiaridade do encontro podia ser notada nas fotografias dos que acompanhavam o presidente ucraniano, aquele que supostamente teria convocado a Conferência, e a suposta anfitriã, a ministra da defesa do país hospedeiro Viola Amherd: porque uma simples passada de olhos pelas fotografias pode comprovar que a verdadeira protagonista e a verdadeira anfitriã do evento midiático era, de novo ela, a alemã Ursula Von Der Leyen. Apenas três dias antes, recebendo Vladimir Zelensky na cúpula do G7 na Itália, Von Der Leyen anunciava mais um crédito de 45 bilhões de dólares extraídos dos rendimentos do dinheiro russo congelado no exterior para a compra de armamentos. Dali, viajaram direto para a conferência de paz. As implicações desses pequenos deslizes ou pecadilhos dos nossos tão queridos impressores deveriam ser levadas mais a sério, porque a cada dia comprometem mais uma já carcomidíssima credibilidade. E estão, como estiveram nas vésperas da primeira grande carnificina da Europa no século passado, cada vez mais metidos com os pés no atoleiro bélico.

IV 
“Há um enorme vazio político. Isso faz com que as pessoas fiquem com raiva, o que não é bom para a democracia.”

Quando chegamos ao quarto e último ponto do programa do BSW, muitos de nós serão tomados por alguma perplexidade. Liberdade de expressão… na Alemanha de 2024! É como se estivéssemos viajando no tempo e nos remetendo às ditaduras latino-americanas dos anos 1960-70, ao Brasil do AI-5, à Argentina de Videla ou ao Chile de Pinochet. No entanto, há “uma pressão cada vez mais forte para que nos conformemos com um espectro cada vez menor de opiniões permitidas”, diz a Wagenknecht, sem temor, inclusive, de comparar a situação atual à repressão da década de 1970, quando tentavam “banir os ‘extremistas de esquerda’ dos empregos no setor público”. E lembra que a ministra do Interior do SPD, Nancy Faeser, “acaba de apresentar um projeto de lei de ‘Promoção da Democracia’ que torna ofensa criminal zombar do governo. (Vale a pena notar o uso cada vez mais constante de uma espécie de novilíngua na qual um dos bandos envolvidos num conflito convoca uma Conferência para a Paz para a qual o outro lado sequer é convidado, e uma lei apelidada Lei de Promoção da Democracia torna crime a gozação e a zombaria.) Não foram poucos os casos em que o Estado alemão usou de artifícios legais e do seu aparato policial para intervir ou literalmente impedir manifestações públicas e pacíficas contra a guerra na Ucrânia e contra o massacre israelense em Gaza. Quase sempre com a conivência dos meios de comunicação – e, se não, com os recursos cada vez mais afiados do Estado policial para inibir eventuais apetites transgressores. No dia 9 de maio passado, por exemplo, o ex-ministro da economia da Grécia Yannis Varoufakis foi impedido pelo governo alemão de entrar no país para participar em um ato em Berlim em defesa da Palestina. O evento foi proibido e a polícia alemã esvaziou o local para onde estava programado. Exemplos parecidos se repetiram na Inglaterra e na França, pelo menos, porque ameaçariam a paz social. A defesa da paz na Ucrânia, contra o massacre israelense em Gaza ou manifestações contra a escalada bélica são uma ameaça à paz no contexto da novilíngua e do atual momento da democracia representativa e suas sacrossantas instituições.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia “Portas abertas para os neonazistas“, do mesmo autor.