Se for permitido ao Congresso sustar inconstitucionalmente decretos, como os do IOF, que são de clara competência do presidente, será o maior enfraquecimento do Executivo na história brasileira. O artigo explica, de forma didática, o que poderá gerar um grave desequilíbrio entre os Poderes.

O decreto do Congresso Nacional que suspende decretos do Executivo que alteraram as alíquotas do IOF é claramente inconstitucional. Mais do que isso, sua aceitação pelo Executivo significaria uma inconstitucionalidade ainda mais grave porque representaria uma alteração da forma como os poderes estão repartidos (ou “separados”) entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário num sistema – o presidencialista – duas vezes escolhido pelo povo em plebiscito.

Vejamos melhor a questão. No Brasil – como é a regra em democracias – quem legisla é o Poder Legislativo (art. 44 da Constituição) e quem exerce a “direção superior da administração federal”, ou seja, quem chefia a administração federal é o Presidente da República (art. 84, II, da Constituição).

A “lei” é o meio por excelência pelo qual se exerce o poder de legislar e o decreto é o principal, mas não o único meio pelo qual se exerce o poder executivo.

Existe, no entanto, uma relação próxima e delicada (do ponto de vista constitucional) entre algumas leis e alguns decretos. É que boa parte das leis não fornece um tratamento completo sobre o tema a que se propõe disciplinar. Assim, por exemplo, uma lei pode criar um programa social para “famílias pobres”. Se a própria lei não trouxer a definição de “pobres” ela só poderá ser aplicada se houver um decreto estipulando o máximo de renda mensal que uma família pode ter para ser considerada pobre para os fins de se beneficiar do tal programa.

Por isso, tais leis precisam ser detalhadas, esclarecidas, complementadas “para sua fiel execução”, assim diz o art. 84, IV da Constituição, por um decreto regulamentador que é de atribuição do Presidente. Trata-se, portanto, de uma situação em que algo – a forma de disciplinar um tema, depende de uma partilha de atribuições entre o Legislativo e o Executivo.

Mas nem todo decreto do Executivo é um decreto regulamentador. Ou seja, existem várias decisões que a Constituição claramente atribui ao Presidente da República (ou aos governadores e prefeitos) que são formalizadas por meio de decreto sem que tal decreto tenha qualquer conteúdo regulamentador. É o caso, por exemplo, da nomeação para um cargo em comissão.

De todo modo, como dissemos, o decreto regulamentador deve se limitar à “fiel execução”, das leis. Ou seja, um decreto regulamentador não pode, a pretexto de esclarecer o conteúdo da lei, alterar ou deturpar este mesmo conteúdo. Assim, continuando com nosso exemplo, existe um relativo espaço dentro do qual se pode legitimamente (ou seja, sem deturpar a lei) definir um limite de renda que qualifique ou não uma família como pobre. No entanto, se um decreto diz que famílias com rendas de até R$ 25.000,00 mensais serão consideradas pobres, ele estaria, evidentemente, deturpando a vontade do legislador.

Foi exatamente para essas situações (nas quais o Executivo, a pretexto de regular uma lei, altera o seu sentido), que a Constituição (no art. 49, V) estabeleceu a competência do Congresso Nacional (invocada pelo Decreto do Congresso) para “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”. Esta previsão constitucional também se explica pela situação em que o Brasil se encontrava, saindo de uma ditadura, que, quando não fechava o Congresso (como no “Pacote de Abril”), invadia suas atribuições legislativas por meio dos famigerados “decretos-lei”.

Ou seja, não existe nenhuma autorização constitucional para que o Congresso possa sustar qualquer ato do Executivo. Tal sustação – que é uma medida excepcional – só é constitucionalmente possível se o ato sustado for, cumulativamente um ato normativo (e não um ato que veicule uma providência concreta e pontual, como a nomeação de uma autoridade ou o início de uma licitação) que tiver exorbitado o poder regulamentar, ou seja, que tiver alterado o conteúdo da lei. Fora dessas hipóteses, qualquer sustação é inconstitucional por representar inadmissível intromissão de um poder em atribuições exclusivas de outro.

Pois bem, o Decreto legislativo nº 176, de 26 de junho de 2025, sustou, com fundamento no referido art. 49, V da Constituição Federal, três decretos do Executivo (Decretos nº 12.466, 12.467, e 12.499 de 2025). Temos, então, que verificar qual lei teria sido deturpada por tais decretos e por que. Ou seja, teríamos que receber uma explicação: o dispositivo X do decreto, a pretexto de regular o artigo Y da Lei Z, alterou seu sentido porque … Mas não temos nem a explicação nem sequer a lei que teria sido deturpada pelos decretos.

É mais ou menos como se um agente de trânsito entregasse uma multa a alguém que, por sua vez, questionasse o que teria feito de errado e o agente respondesse que tinha atribuição para lavrar multas e que era isso que importava …

Ora, como amplamente noticiado, os decretos se limitam, basicamente, a alterar as alíquotas do IOF (imposto sobre operações financeiras).

E, neste ponto, é que se mostra o absurdo da invocação, pelo Congresso, do art. 49, V da Constituição Federal neste caso específico.

É que a alteração de alíquotas do IOF é exatamente uma daquelas atribuições que a Constituição expressamente atribui ao Presidente da República (art. 153, V e seu § 1º da Constituição Federal). É verdade que o dispositivo impõe ao Presidente a obediência às condições e aos limites eventualmente estabelecidos em lei, ou seja, se existisse uma lei estabelecendo algum limite específico para tal alteração ela teria que ser observada. Tal lei (supostamente violada), no entanto, não foi mencionada nos debates porque … não existe.

É que, por falar em debates, é sabido que a sustação em questão foi a forma (mal) escolhida pelo Congresso para dar tintas de constitucionalidade a uma medida política. E aí é que entra o problema: pressões políticas entre Executivo e Legislativo – todos certamente pensando no bem do país – fazem parte do jogo constitucional.

No entanto, no caso em concreto, o Executivo está defronte a um verdadeiro “rubicão constitucional”. Um limite que, se ultrapassado sem reação, pode significar nova etapa de reconfiguração do presidencialismo brasileiro. Com efeito, após as diversas emendas mudando a forma de aprovação e execução do orçamento (sem contar com um impeachment confessadamente decidido pelo “conjunto da obra”), estamos assistindo ao enfraquecimento do Presidente e ao empoderamento de um Congresso que parece adquirir todas as atribuições dos legislativos parlamentaristas sem nenhuma de suas responsabilidades. Não foi esse o modelo que o constituinte aprovou em 1988.

Nessa linha, se for permitido ao Congresso sustar qualquer decreto do Presidente da República, estaremos assistindo ao maior enfraquecimento do Executivo na História Brasileira, um caminho que, uma vez trilhado, pode ser difícil de retornar.

Analistas políticos são unânimes em dizer que, se for ao STF, o governo sofrerá uma forte reação política do Congresso. Provavelmente estão certos. Por outro lado, do ponto de vista constitucional – mas também político –, se não for ao STF, a Presidência da República corre o sério risco de derreter.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli Revisão: Celia Bartone
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